domingo, 29 de dezembro de 2013

wordpress

Ano novo, blog novo. A partir de agora em http://abreosteusolhos.wordpress.com/

nostalgias de fim de ano I


Todos os anos, nesta altura, senta-se no passeio e observa. Ela gosta de ver sem dizer nada, os poros das sensações transformando-se em esponjas diminutas absolutamente poderosas.
A calçada está suja como habitualmente, as pessoas também são as mesmas, ano após ano, que tristeza, pensa. A mulher repara nas posturas, na graduação do brilho dos olhos, nas formas de caminhar. A maioria carrega os anos em vez de os ter vivido. Essa não era uma novidade. Talvez ela se sente ali, todos os Dezembros, esperando uma diferença; ou talvez seja algo perfeitamente egoísta e na realidade ela veja na ausência de mudança o espelho de si mesma que um dia esteve bem próximo e que nunca mais quer ver. Hoje sabe que não está ao seu alcance fazer o que quer que seja pela mudança de outrem, ter essa expectativa ou sequer ajudar; ela não tem esse direito, ninguém tem. Apenas a sua lhe é acessível, basta retirar o medo da equação.
A mulher ergue-se do passeio e sacode o pó de um ano que em breve será passado. As partículas espalham-se pelo ar e depois pousam dentro da caixa de veludo que ela entretanto abriu. A mulher deixa que algumas voem para longe enquanto outras ficam firmemente agarradas ao tecido. Finalmente fecha a caixa e fixa mentalmente o local onde deseja colocá-la. O passado não se enterra, digere-se.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

comunicar

Há dias em que parece que quase nada funciona, sobretudo a comunicação. Detesto quando isso acontece. Comunicar faz parte da nossa natureza.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

segunda-feira, dia de todos os papéis

Segunda-feira, dia de correria. Faço a lista dos que-fazeres, resolvo o que ficou por resolver da semana anterior, corro para as aulas, no caminho dou um beijo por telefone á minha mãe, acabo o dia em casa com os miúdos e, esta noite, ainda tenho um enfeite de Natal por decorar com o mais pequeno.No primeiro dia da semana, acumulo sempre todos os papéis. A vida é isto também.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

BEZT weekend

Duas coisas boas para começar bem o final da semana.

(Chama-se BEZT. Espreitem, vale a pena.)



quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

a janela

Pousado na janela, o pássaro espreitou. Andava a rondar aquela casa havia muito tempo. A curiosidade espicaçava-o mas não estava completamente certo de querer entrar. As últimas tinham fechado portas ou sugerido vidraças entreabertas onde pensara que havia luz quando apenas se tratara da chama de uma vela. Confuso, o pássaro agitou as penas como se pretendesse voar para longe. Um ruído sobressaltou-o, olhou de novo. A janela estava agora aberta. Do lado de dentro, um bebedouro. A medo, a ave entrou. Sem perder de vista a janela, teve de admitir que aquilo que via do interior lhe agradava. Saltou e voou rapidamente pelo espaço, não podia perder de vista o mundo lá fora. Por fim, dirigiu-se ao bebedouro e satisfez a sede. A janela continuava aberta. O pássaro sacudiu as asas e avançou para fora, contente.
No dia seguinte, voltou, tornou a entrar, descobriu mais uns quantos detalhes e novamente saiu. Foi regressando à casa em dias seguidos ou intermitentes, encontrando sempre, em cada uma de todas as vezes, a janela sem fechar e o bebedouro, fosse qual fosse a estação do ano.
Numa tarde muito fria, o pássaro sentiu-se tão aconchegado lá dentro que adormeceu. Acordou assustado e irritado consigo mesmo pela distracção: talvez tivesse sido desta. Uma brisa gelada soprou sobre as penas da sua cabeça; apesar de tudo, da temperatura, do gelo, o trinco não tinha sido fechado.
Então, e apenas então, a ave descansou: agora sim, podia deixar-se estar. Nada lhe poderia dar mais vontade de ficar que a eterna liberdade de poder partir.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

rir dos infernos

Para ver se me acalmo e me rio com as coisas que tentam fazer de parte da nossa vida um inferninho.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

gravidade

Acordou e, sem pensar, esticou o braço, agarrou no comando e escolheu a música que falava da gravidade. O botão de repeat acendeu-se e ela escutou-a vezes sem conta, vezes seguidas, obrigando-se a não cantar, a escutar a letra com atenção, a compreender como cada nota tinha impacto, enquanto se arranjava para uma nova semana. Na casa silenciosa, a música fez-se ouvir de forma repetida, a mulher calando-se de cada vez que tinha a tentação de a reproduzir com a sua voz. Por fim, o espaço ficou em silêncio, ela desligara a repetição. Por um instante, estremeceu, como sempre tremia face a tomadas de consciência, a momentos de mudança. Abriu a janela , ficou sem ar de tanto medo mas sem hesitar, saltou. A luz e o ar frio envolveram-na nos seus braços e deixaram-na cair, de pé, na calçada. A mulher tremia agora em cada bocadinho de pele. Contudo, era preciso. Na vida, por vezes é preciso deixar-se cair. Depois, apenas depois de sentir a queda, de experimentar o inebriar da luz e o receio da escuridão, será possível, finalmente, voltar a confiar.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

pois

Há uma palavra na nossa língua que serve para tudo e mais alguma coisa. Serve para concordar, serve para discordar de maneira diplomática quando associada a um 'mas', serve para ser enfático quando associada ao verbo ser e serve também quando se fica sem palavras ou mesmo com uma certa sensação de impotência, cansaço ou tristeza. Pois.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

listas

A mulher tem uma lista interminável de coisas por fazer. Ela gosta de listas, aprecia sobretudo o prazer da tarefa feita, do assunto resolvido, das pessoas queridas a contactar dos sonhos por cumprir. Precisa de as escrever para não se esquecer da vida. 

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

amarelo e rosa

Eram sete da manhã. A ponte sobre o Tejo brilhava sob um céu amarelo e rosado, o sol ainda escondendo-se por baixo dos tabuleiros. No silêncio da casa, ainda adormecida, a mulher sorriu. 

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

fechado para mais palavras

Sessenta e muitas ideias para colocar em palavras e escrever um livro de uma empresa. Não sobram muitas mais, confesso. Prometo voltar na semana que vem. Até lá, leiam, leiam muito. As histórias e os seus autores merecem a vossa viagem.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

lo mucho y la nada

Nada a acrescentar. Muito a retirar.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

tentação

O homem falou. E falou. E falou. Sem dizer nada de interessante. Nada de nada. É incrível como as pessoas perdem a totalidade da noção de como podem ser desinteressantes e estar tão cheias de si mesmas. Absoluta falta de inteligência, penso eu. Mas, como sempre digo aos meus filhos, passar por estas situações serve para afinar o critério, refinar a nossa humildade e procurar nunca cair na mesma tentação.

domingo, 3 de novembro de 2013

quiet now.

A mulher disse ao amigo: sabes quando precisas de ficar em silêncio porque apenas ele te reconforta mas pela força das circunstâncias és obrigada a falar, a dizer coisas, opinar? 
Ele agarrou-lhe na mão e disse apenas, baixinho: be quiet, now.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

happyween

Uma hora depois, ainda sentados no carro, mãe e criança já tinham esgotado brincadeiras e conversa. Ao chegarem à porta do evento o miúdo viu um simulacro de fantasma, choramingou e disse que não queria entrar. A mãe recordou os seus velhos terrores das caras tapadas ou irreconhecíveis.
Passearam o resto da tarde no Chiado com um gelado nas mãos, fazendo de botões de almofada interruptores de transformação e dançando como robots no parque de estacionamento. O dia acabou com uma sessão de Despicable Me, uma história para adormecer e vários beijos sentidos. Coisas normais, sem disfarces ou tradições coladas a cuspo. Verdadeiro Happyween.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

livros, livros e mais livros

Os livros enchem uma casa. Não os de fingir, apenas lombadas ou capas vazias de miolo, mas os de verdade. Os livros vividos, dobrados, anotados, dedicados, fazem parte de uma vida; por vezes, de muitas. Os dos meus pais viajaram de barco para África, tornaram a Portugal muitos anos depois, perdendo-se alguns no caminho, outros trazendo o cheiro da terra nas folhas amarelecidas. Tenho o orgulho de poder dizer que nasci e cresci entre livros, o que significa crescer entre mil histórias, pensamentos, questões, assuntos que nos fazem viajar, aprender e também amadurecer. Uma das melhores memórias que guardo é não ter memória do meu primeiro livro. Grata, essa, significa que é remota, bem antiga, a sensação de não ter consciência de um acto que somente se tem quando repetido tantas vezes quantas as necessárias para deixar de ser uma acção e passar a ser um gesto natural.
Os livros, usados, felizes, enchem a casa dos meus pais e, hoje em dia, a minha. Por isso, confesso que não resisto à tentação quando conheço a casa de alguém novo. Os meus olhos procuram, viajam, observam. Acredito que contam histórias que não são apenas as dos seus autores, contam também o percurso de quem os tem. Prateleiras de livros são estantes de revelações dos donos da casa. Por isso, nesta bisbilhotice militante, sorrio ao ver velhos conhecidos. E, se vejo livros por todo o lado, até nos locais mais inusitados do espaço, fico feliz. É sinal de boas-vindas. É sinal de casa.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

som-do-sangue

Eu tinha vinte e um anos e acabava de entrar para a minha primeira agência, como copy trainee. Meio tímida, olhava para todos-os-que-sabiam com a sofreguidão pura de quem quer saber e acredita que com a força da curiosidade, da capacidade e da perseverança, um dia vai conseguir. Claro que não seria fácil mas seria uma questão de tempo. 
Até que chegou aquele dia. Apresentaram-no como o TV Producer e ele levou-me à Namouche, o estúdio de som mais venerado da altura, casa de trabalho de Guilherme Inês e Zé da Ponte. Eu ia assistir a um briefing para a produção de um jingle. O TV Producer falou, gesticulando com as mãos grandes e vi som nas suas palavras. Mais, vi como as palavras dele se transformavam em música, ali, ao vivo, em poucas horas. Sei que fiquei muda, nunca tinha ouvido ninguém explicar uma intenção musical daquela maneira, como se fizesse parte do sangue. 
Chamava-se Zé Cruz, era angolano, bebia, fumava e sabe Deus que mais o quê, e tinha sensibilidade e melodia nos poros porque vivia, vivia de forma intensa, sem medos, desbragada. Com ele aprendi a explicar o som que se quer e a sentir o som que se procura. Aprendi a conhecer o Som, a não ter medo do linguajar do som. Um dia, depois de ter feito um comentário em estúdio, fiquei meio envergonhada e perguntei-lhe se teria ouvido mal. O Zé fez-me uma festa no cabelo, sorriu e disse: "é isso mesmo miúda, não ouviste nada mal, se há coisa que tu não és, é surda." Corei.

Soube há poucas horas que o Zé se foi embora deste mundo e ainda me custa a acreditar. Resta-me o consolo de pensar que, talvez, a esta hora, pode estar a fazer ritmos numa qualquer mesa dos céus, fazendo da música a salvação de alguém.
Que pena nunca mais te ter visto, Zé.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

ride, sally, ride



Música do dia. Se não viram o filme (The Commitments), façam o favor. É de 1984 mas vale a pena. Tenham um bom fim de semana. 

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

pequenina

Quando uma criança me oferece um presente fico sem palavras. Pode ser um pedacinho de papel, um desenho ou metade de um rebuçado peganhento, fico sem palavras.
Os miúdos não oferecem por cortesia, por ser a data certa, porque dá jeito ou porque lhes interessa. Quando o fazem e sobretudo quando nos estendem objectos deles ou criados por eles, dão-nos um bocadinho de si.
Eu sei. Nunca me esqueci. E por isso fico pequenina.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

um dia como outro qualquer

A mulher desceu as ruas a caminho do rio. No passeio, observava, como sempre, mil olhos procurando acasos, cenas invulgares, gestos especiais ou bonitos na trivialidade de um dia como outro qualquer.
Um casal de estrangeiros apaixonados que sorri quando espera pelo completar da fotografia.
Uma mulher que atravessa a rua com uma cabeça de manequim nas mãos.
A loja de chocolates desconhecida.
A galeria de arte antiga com fotografias de absurdo na montra.
A escola de escrita num novo lugar.
Um pub deslocado de tempo, de britânicos.
E o vento, aquele vento, impaciente como ela era por vezes, que lhe provocava dores de cabeça pela inquietação, pela vontade de fazer mais, escrever mais. 
Eram demasiadas as histórias que espreitavam.
A mulher acelerou o passo.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

downton again



Acabei agora mesmo de ver o primeiro episódio da quarta temporada. Dizer o quê? Brilliant.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

wes, yes!



Coming soon - 2014. Yeyyyyyyy!

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

lua-cheia

Anoitecia. As flores espreguiçaram as pétalas e, sem ruído, envolveram o seu centro. Os insectos recolheram a pequenos buracos na terra. As árvores acolheram os pássaros nos seus ramos. O silêncio começou a instalar-se. Mas, no jacarandá da Avenida, o beija-flor não queria dormir. Seduzido pelo astro gigante e luminoso, não podia deixar de o observar. Era paixão antiga, aquela, embora apenas agora se desse conta.  A ave suspirou, fechou as pálpebras  e desejou ser uma estrela. E então, nesse preciso momento, sentiu uma chuva miudinha; o beija-flor abriu os olhos e reparou nas suas penas molhadas de dourado. Ergueu o olhar. A Lua chorava, na alegria do amor.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

dentro da razão

Deitada na cama, a mulher teve arrepios. Vários e seguidos. Ficou irritada: este não é o momento para uma coisa daquelas (nunca é para ela, aliás). Resolveu não ligar e afogou as sensações numa pastilha efervescente. Mais arrepios. E, de súbito, o corpo cedeu, desmaiando num sono profundo. Afinal também era isso. Também. Ou 'isso' era o princípio de tudo o resto, na verdade. O físico quase sempre tem mais razão do que a cabeça. 

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

sem título

Saudades. Saudades de usar as palavras, agora que aprendeu que são como notas musicais ou cada uma delas a junção de pequenos fragmentos de vibração. Saudades de as escrever criando ligações sensuais, irónicas, mordazes, misteriosas, construindo histórias, impressões de dia.
A mulher não consegue viver sem as palavras, sem as dizer, contar, escolher, repartir ou sacrificar. A relação da mulher com as palavras não tem palavras, quase sempre é curta quando descrita por palavras e tem um efeito dentro dela que equivale a muito pouca coisa passível de ser explicada. Quando uma palavra estala ou explode dentro de si sob a forma de uma imagem antes de ser palavra é quase quase como a forma como os cientistas explicam um deja vu. A mulher conhece a sensação e por isso gosta das palavras. 
Existe apenas uma palavra cuja ressonância a mulher não consegue traduzir. É uma das mais curtas da linguagem universal mas é o eco da beleza mais profunda da existência. Ao ver-se confrontada com ela, a mulher fica muda; aí sim, palavras não chegam. Nunca chegarão, aliás.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

good oldies II



Tenham um bom fim de semana.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

no mar, de novo

A mulher dormiu a noite toda numa espécie de mar escuro onde não cabiam sonhos. Pela primeira vez em algum tempo a fantasia não a enfeitiçara; ela abandonara-se ao sono procurando refazer estruturas, renovar outras, reciclar o que era verdade, deitar fora o que era mera ilusão ou mentira. Tinha que se fortalecer. A grande mudança esperava-a e era ela, só ela, a arquitecta, como alguém lhe dissera uma vez.
Antes de acordar completamente, a mulher olhou o mar escuro em baixo e percebeu que o fundo já estava mais longe. A ascensão começara. Faltava pouco para chegar à luz.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

sorte dos deuses

O que é que se chama a um filho de dezassete anos que nos aceita, ajuda, compreende e apoia em qualquer decisão de maior? Chama-se grande companheiro. E enorme dádiva dos céus.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

by the window

Cinco da manhã. Sem conseguir dormir, a mulher abriu a janela e cruzou os braços no parapeito. Sentiu a presença. Era Seth, como sempre do lado esquerdo.

Tinha a esperança que estivesses aqui, disse ela.

O anjo sorriu:
The word for today is 'dream'. Discuss.

Ela fez uma pausa e depois
Imaginar. Ter uma visão. Olhar para a frente. Aprender com o que se fez ou não fez. Ter a coragem de criar a mudança.

Seth afastou uma madeixa de cabelo da cara dela. Olhos brilhantes como espelhos de rio. O anjo arrepiou-se:
Do you really believe in what you're saying?

Sim e geralmente eu sei, eu sinto. É como se ao ouvir dream me sentisse de facto na plenitude da luz ou no nevoeiro cerrado que encerra um mistério. Adoro essa vibração na palavra. Não gosto de névoa, de nuvens que ensombrem o sol, respondeu.

O anjo viu nos olhos dela uma faísca que conhecia. E então, disse:
Are you ready?

A mulher endireitou-se:
Sabes o que é não ter a menor partícula de dúvida, sabes o que é ver a beleza absoluta a oferecer-se aos teus braços, sabes o que é acabar com a mentira e ter uma semente de verdade nas mãos? Sim, estou pronta. Agora podes partir.

Wait, voltou ele.

Ela deu-lhe um beijo e disse-lhe ao ouvido:
Eu sei que estarás sempre aí. Mesmo que não te volte a ver.

A janela fechou-se.
O anjo ficou triste. Pela primeira vez em mais de trezentos anos, sabia o que era a tristeza, a sensação da possível falta. 
Ao sentir-se mais humano compreendeu que tinha terminado a sua missão. Pairou por uns instantes e depois não resistiu: sem fazer qualquer espécie de ruído, usando os seus dedos hábeis e esguios, reabriu a janela e ordenou à matéria que assim permanecesse, mesmo que a mulher a tornasse a encerrar. Foi apenas um pouco mas o suficiente. 
Seth nunca iria prescindir de vigiar o sono e a respiração tranquila daquela que amava.

domingo, 6 de outubro de 2013

verde salgado

A mulher entrou sozinha na festa que acontece todos os anos. Meio nervosa, sem saber o que esperar. Sem que ela nada fizesse as pontes foram-se criando, os amigos recentes, a mãe do amigo do filho, o anfitrião, a mulher do jantar. Era inevitável pensar mas a mulher não queria iludir-se: as pontes estavam lá mas os fios eram muito ténues, ou pelo menos ela via-os assim pela ausência. Talvez se tivesse esquecido, não suportava a ideia mas talvez fosse isso mesmo, um texto chamado black. A mulher abandonou a festa muito tarde. Confusa, não conseguia regressar a casa de imediato; dirigiu-se ao rio, olhou as águas e pensou que talvez tivesse sonhado toda a beleza. Então, os olhos dela transformaram-se num mar de água salgada que se derramou para dentro do rio. As águas ficaram mais verdes.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

ao meu filho Tomás


'Só preciso de cinco minutos.'

A mulher fechou a porta do escritório, voltou a sentar-se na cadeira, estendeu as pernas sobre a secretária, fechou os olhos e procurou um momento daquele dia na memória. Dezasseis anos voltaram atrás. 

Close up de barriga enorme, seguido de plano mais aberto sobre pernas de mulher sobre um pouf. As pernas tremem em solavancos. Imagem gira sobre si própria. Mulher ri em gargalhadas que não se deixam ouvir. Imagem dissolve-se, anda mais rápido. Um Fiat Cinquecento desloca-se sem grande velocidade numa madrugada  que parece quente pela luminosidade das ruas. As imagens atropelam-se de novo. Numa enfermaria, mulher segura recém-nascido nos braços.

Abriu os olhos e sorriu. Era certo. Aquela criança tinha nascido depois de um ataque de riso. Talvez por isso fosse tão excepcional. Ou talvez o fosse pelo amor com que tinha sido concebida, pela gravidez serena, ou apenas... porque sim. 

'Empurrei-te com gargalhadas e tu devolves-me sorrisos todos os dias. Obrigada meu anjo de dezassete anos.'

(Repeti o texto de outros anos mas esta é a minha memória eterna do nascimento do meu filho Tomás, uma das minhas obras mais perfeitas. Hoje faz dezassete anos e já me ensinou o que é o Projecto Venus, obrigou-me a revisitar David Bowie e música disco, sabe muito mais que eu de muitas coisas e é o miúdo mais generoso do planeta.)

linhas, pontos

Ela alinhavava. Cortava. Voltava a alinhavar. Cortava de novo. Escolhia outra cor, regressava ao preto, a sua cor preferida na superfície branca. As junções voavam na sua cabeça mais rápido que nas mãos. A mulher suspirava e voltava de novo. Por vezes, ficava satisfeita, noutras, as mais raras, as mais intensas, sentia os pontos longe. Quando o motivo vinha de dentro era sempre mais difícil encontrar a combinação perfeita. O sentido, a expressão, perdiam-se, odiava ser repetitiva, banal: como se preparava uma ternura imensa para ser cosida com mestria? 
Depois de tantos, depois de demasiados, aquele dia chegou. Um fio, delicado e macio, enrolou-se nos seus dedos. A mulher observou a magia e suspendeu a respiração. O fio foi percorrendo a pele das mãos, espreitou para dentro das roupas, descobriu todos os poros e abraçou-lhe o coração. Surpreendida com a rareza de não ter de fazer mais nada, fechou os olhos e saboreou, jurando a si mesma que apenas faria isso mesmo. Saborear. A costureira das palavras sabia agora que não era preciso explicar mais nada.


(A foto, maravilhosa, é do José D'Almeida e da Maria Flores.)

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

balançar



Hoje preciso disto. Se segura no balanço, sim. Não esquente a cabeça, não. E, no meio de tudo, deixe-se levar pela percussão e relaxe menina, relaxa. Não há outra forma, hoje.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

fall


É Outubro. 
Nunca sei o que sinto nesta altura do ano, confesso. Entristece-me a partida do estio com os seus dias longos, a pele despida sem necessidade de capas, os perfumes libertos, a limpeza do mar. 
Contudo, o Outono chega e o abraço dos frutos quentes encanta-me. Chegam as castanhas nas suas mil e uma maneiras generosas, relembro e celebro o cozinhar de tantas compotas deliciosas no vagar sonolento das colheres de madeira, no odor a açúcar torrado, no deslizar de um dedo matreiro que rouba um pedaço.
Aproximam-se noites sossegadas em silêncios que se desenham no ritmo lento do crepitar da lenha, ou plenas de vozes e risos dos amigos que adoramos deixar entrar em casa e partilhar a nossa vida. É um facto: o Verão vive-se lá fora, o Outono, por dentro, deixando vir o frio devagarinho para que os corpos se ajustem a uma nova estação da vida. Talvez haja um sentido em tudo isto: quem não precisa de aconchego depois de demasiado tempo ao sol? 
Outono diz-se Fall, em Inglês. Escrever é uma espécie de Outono: uma forma de despedida, uma forma de renovação, deixar que as vísceras falem, se limpem e assim se cuidem, permitir que o coração caia, se despedace e reconstrua, dando mais espaço a momentos bonitos da vida, a tantos momentos absolutamente maravilhosos desta vida que vale a pena contar.

sábado, 28 de setembro de 2013

de volta

Os lençóis são brancos. As paredes são brancas. A roupa que ela veste é branca. Existem múltiplos pormenores de cor espalhados pela casa mas a mulher sente tudo branco porque o branco para ela, é. São pés descalços na madeira fresca sem necessidade de defesa, enraizando-se. Pele nua diante de um espelho que desperta um sorriso, sem pudor. 
Hoje ela vê tudo branco e recorda em silêncio. Recorda tantas coisas escondidas, empurradas para um certo escuro de dentro. Ao fazê-lo, surgem todos os passos, todas as curvas; o trilho do caminho de volta finalmente reapareceu.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

talvez



Talvez seja da bruma. 
Da humidade tão fina que se sente nas pontas dos dedos. 
Do odor fresco. 
Não importa o quê. 
Apenas sei que estes dias me devolvem o cheiro da terra, 
o céu gigante com todas as constelações à distância de um braço, 
a natureza fértil, feminina, 
a dádiva avassaladora. 
Nestes dias, transporto-me inevitavelmente a África. 
E sinto saudades. 
Esta é uma semente que conheci tarde mas que, apesar de tudo, 
se plantou bem firme, 
feita raíz poderosa como a de um embondeiro.
O nosso coração não tem tamanho.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

nick


High Fidelity é um dos filmes da minha vida. Acho que já o vi dezenas de vezes e sempre que aparece perdido num canal qualquer é difícil resistir ou não ficar irritada por ter perdido o princípio, o meio ou estar perto do fim. Comprei o livro quando saí do cinema e, estupidamente, depois não o li, abafado como foi por todos os outros que ocupam as minhas estantes, talvez mais ciumentos ou sedentos de atenção. 
Acontece que os livros (ou os autores) não desistem do leitor; por mais anónimo que seja, insistem, procuram, arranjam o veículo certo, e chegam. À pessoa que os deve ler. Nick Hornby chegou a mim com 31 songs, as canções que fizeram a diferença na sua vida. Concorde-se ou não, conheçam-se ou não, não importa. O que faz sentido é o porquê na sua forma de amor pela música ou por aquilo que ela nos traz:
"All I can say is that I can hear things that aren't there, see and feel things I can't normally see or feel, and start to realize that, yes, there is such a thing as an immortal soul, or, at the very least, a unifying human consciousness, that our lifes are short but have meaning."
Tudo isto referindo-se a...música. Claro que sim. Pois claro. Como eu o compreendo. Agora percebo muito mais sobre mim mesma. É lindo quando um livro faz com que fiquemos mais próximos de nós.

domingo, 22 de setembro de 2013

nas entrelinhas

A mulher decide que vai finalmente escrever a história do anjo, o conto que surgiu como que por magia, empurrado por uma música longa, estranha e triste que tinha feito crescer imagens diante dos seus olhos. Era a história de uma queda e de uma certa ressurreição pela morte. E, afinal, não é sempre? Talvez devamos morrer muitas vezes em vida para poder tornar a ela e vivê-la, a cada vez ultrapassando um degrau ou as pedras da vertente, mais preparados para o que mais vier. Se não, a morte verdadeira, real, não apenas do espírito mas igualmente do corpo, será certa. A mulher não a deseja e por isso vai escrever, vai escrever até lhe doerem as mãos. Ela sabe que, ao fazê-lo, coserá nas entrelinhas a sua própria vida.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

mais nada

Mãe, tenho saudades de ti.

Mãe, tu és a princesa e eu o caçador, sim? 
Eu defendo-te dos monstros e dos gigantes, ok?

Mãe, gosto muito de ti.

A conversa telefónica começou e acabou assim, deixando-me sem palavras como este miúdo pequenino me deixa sempre, em todas as vezes (e são muitas) em que diz estas frases. E o mais importante, o mais comovente, não são os termos mas antes o sentimento e a forma, a verdade. Com tanto, não consigo dizer mais nada. Absolutamente mais nada. 

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

sede

Esquecidos. Abandonados. Adormecidos. Num sono profundo, bem perto do sono dos contos infantis, aquele de que apenas se desperta com a lembrança ou a salvação. Assim estavam eles, encostados às prateleiras, encostados uns aos outros, como que suportando-se. Mas, naquele final de tarde, um deles estremeceu pelo contacto com os dedos de uma mão, os outros escorregaram como um dominó. Estremunhados, acotovelaram-se e depois fizeram silêncio. Veio o espanto e o sorriso. Era a música. A música tocava o ar, perfumando-o com notas arrumadas; ela regressara, procurando as melodias como sempre fizera. Com sede de harmonia. Os discos tinham saudades daquela mulher, agora tinham consciência disso depois de um sono demasiado longo que quase lhes roubara a vida.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

tic tac

Na casa do meu avô, havia um relógio de parede com mais de duzentos anos. Na casa do tio António, um relógio de cuco e um de chão, vertical, que nos reconfortava com o Big Ben. E na casa do tio Jose, em Puerto Rico, havia muitos que cantavam de hora a hora, quase rivalizando com os coquis, uns sapinhos minúsculos que ali tornam mais melodiosas as noites.
O meu tio Jose era um homem enorme. Na altura, na generosidade e no sentido de humor. Uma destas noites, sonhei que voltava a ser miúda, e que acordara com um pesadelo do qual o cuco fazia parte. Mas o tio Jose apareceu, aninhou-me nos seus braços daquela forma que ele sabia e segredou-me uma frase ao ouvido com o sorriso brilhante dos seus olhos pequeninos. O sonho mau transformou-se de imediato em sonho bom e acordei com saudade. Fazes-me tanta falta, homem grande e gentil.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

brisa quase



A brisa entrou na praia, pediu muita desculpa à areia e disse que agora não a podia refrescar. Estava cansada. 
A areia tentou avisá-la mas a brisa, não querendo ouvir mais nada, escondeu-se no cantinho de uma concha branca e deixou vir o sono.

Brisa corre, corre feita vento doido, corre pelas estradas, varrendo espigas de trigo, pedaços de folha, pedras diminutas. O vôo, meteórico, faz a brisa-feita-vento-doido quase invisível de tão veloz, tremem as telhas dos telhados, abanam as portas e chaminés, rezingam os pássaros que voam sem querer usar as asas.
Um ruído cavo, profundo, grave, repetido, ouve-se ao longe. A brisa-feita-vento-doido abranda, e é quase-vento, quase-brisa, quase-silêncio. Avança devagarinho como o sopro de uma criança ou as patas de um gato, meio a medo. O som é seguro. A brisa-desfeita-de-silêncio enrosca-se no som e deixa-se rodopiar.

Estremeceu por dentro e acordou. 
Tonteira de sonho, pensou. 
Olhou para si e na realidade era brisa-dança.
O som sorriu.
Ela é que não quisera ligar á areia.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

rega do dia

Fazia calor. Um calor imenso.
A mulher passou de carro. Um pingo de água fresca molhou a pele do seu braço. Ela deu um salto e riu de si mesma pela surpresa. Reparou então nos aspersores que regavam as plantas sedentas. Nesse  preciso momento, Seu Jorge cantou diga eu ti amo e eu I lovi yuuuu, é um jeito quente, uma onda boa...
A mulher deu uma gargalhada, deu meia volta, espreitou e, ao não ver nenhuma possibilidade de ralhete, fez o que tinha a fazer: abriu as janelas do automóvel e deixou que a água refrescasse o carro por dentro. Seu Jorge sorriu na voz e disse 'Áuuuu'. Ela também.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

o sabor invisível de um gelado

A mulher reparou e a empregada também como as duas senhoras chegaram, de mansinho. Não viam nada, tinha-lhes sido negada essa capacidade. Pediram um iogurte gelado, entre gracejos e, sem hesitar provaram o primeiro bocadinho. As descrições eram maravilhosas como apenas alguém a quem foi retirado um sentido as pode fazer. Agradeceram e foram-se embora, de braço dado, tacteando o caminho. 
A mulher sentiu o nó na garganta e os olhos encheram-se de lágrimas. Olhou para a empregada e percebeu um estado igual. Riram-se as duas num gesto de profundo respeito pela vida. Há coisas tão mais sensíveis que o comezinho do dia-à-dia.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

viagem

O beija-flor adormecera a bordo. Quando o navio chegou ao destino, o ajustar das amarras provocou um solavanco e o pássaro despertou. Enervado, espreguiçou as asas, esticou as patas diminutas e preparou-se. O olhar dizia-lhe que se tratava de um local desconhecido; o instinto avisou que era melhor escapar. Mas havia um certo perfume no ar. E a luz. O beija-flor levantou o pescoço, era impossível desistir. Voou então depressa, descobrindo um rio de prata, edifícios exagerados de branco por uma luz que se abandonava à reflexão de forma generosa. O colibri redobrou a velocidade e aí descobriu a avenida das árvores mais bonitas que alguma vez havia visto. Aquela era a origem do perfume doce e violeta, como eram violetas as cores das flores que invadiam as árvores. O beija-flor soube então que estava irremediavelmente apaixonado. Pousou. Uma borboleta amarela segredou-lhe o nome; duas penas do seu pequeno corpo mimetizaram de imediato a cor lilás. O insecto avisou que depois do violeta chegaria o verde, e depois do verde, a ausência, o frio. O pássaro não quis saber; afinal, a vida era curta. Levantou vôo, beijou cada uma e todas as flores da avenida e adormeceu. Valia a pena. Em Lisboa, valia sempre a pena o amor.

domingo, 8 de setembro de 2013

água doce

Azul escuro. Azul noite. Azul quase negro. Azul profundo. Tinha sido assim a sua noite. A primeira em muito tempo sem se sentir suspensa numa rede delicada e demasiado frágil. A primeira em muitos dias de abandono perfeito ao sono. E porquê? A mulher amava a verdade. Todas as verdades, aliás, das mais bonitas às mais feias, das mais difíceis às mais fáceis, mas sempre verdade. A falta dela tornava-a rouca, tirava-lhe a capacidade de cantar, um aperto insuportável no peito instalava-se e a única varanda possível era a que lhe permitia mergulhar no mar. Da verdade. Hoje, a mulher era a sobrevivente de um mergulho consciente que a levara até às mais escuras profundezas, sem sombra de quaisquer medos porque era por si, tinha sido apenas por si e estava consigo. Inteira.
Na metáfora perfeita dessa noite, retirou do corpo pequenos pedaços de algas de todas as cores e acariciou as queimaduras dos vários corais de fogo. Passou os lábios pela pele dos braços e, ao sentir o sal, pensou que era o momento. Chegara o momento merecido de um beijo de água doce e macia. Um beijo longo. Para sempre.

sábado, 7 de setembro de 2013

paz

Começou miúda, miudinha, com pequenas gotas alterando a superfície lisa e quente, deixando notas de humidade ligeiras. Teimosa, ignorou a brisa e insistiu. Pequenas comportas abriram-se e, ao sentir poder, metamorfoseou-se numa torrente silenciosa mas persistente. A tempestade sobreveio arrastando tudo à passagem. A brisa pareceu perder o norte mas de súbito reconheceu a água e alinhou. 
Veio o silêncio; tão imenso que a brisa pensou ter-se transformado em vento. Calou-se, então. A paz da verdade solitária tinha chegado.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

dores de crescimento

O miúdo mais velho mede mais de um metro e oitenta e três. Acabou de chegar de Berlim, uma viagem que certamente foi incrível, graças ao pai e à Rita. É um rapaz-homem invulgarmente inteligente, invulgarmente maduro e um doce quando se passa a sua barreira de reserva. Fora tudo isso, conta-me muito poucas coisas. Acho que é normal nestas idades. E, se ele ler este texto, só espero que perceba que estas são as dores de crescimento. Uma mãe também as tem. Sou uma mãe-galinha, reconheço.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

listen



A música resolve muita coisa. Escuta a música, oferece música e deixa-te de merdas. 

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

brisa

Há uma brisa fresca no ar.
Para onde vai?
Não sei. Não quero saber.
Só importa que é brisa fresca.
E confiar.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

insónia

Quatro horas de sono inquieto depois de uma insónia de gigante com a profusão inerente das músicas que se repetem, entrecortadas por imagens reais ou imaginárias, tarefas por fazer, a vontade de esquecer tudo e dormir e o tic, tac, tic, tac permanente do relógio real, pousado num lugar confortável do quarto. A nossa cabeça é mesmo doida.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

relva fresca

A mulher riu. Riu até doer a pele da cara, riu até as lágrimas caírem, sem vergonha, arrastando tudo na passagem. Quando se ria assim, sabia a partida de crianças, ao cheiro da relva fresca recém-cortada, a gelado de limão com champagne, a dedos que tiram bocados de mousse de chocolate em segredo, ao riso dobrado de um bebé. Rir-se desta forma, pensou ela, era voltar de novo á sua essência, à sua verdade descontraída e virada para fora, aberta ao mundo. Numa segunda-feira e na primeira segunda-feira de trabalho depois de férias, era uma dádiva. Sorte era isto mesmo. A mulher não encontrou palavras suficientes para agradecer mas descansou; sabia que a sua gratidão não precisaria disso para ser compreendida.

domingo, 25 de agosto de 2013

(último) diário de bordo - excertos inesquecíveis III

"... and I would like to ask you, as best as I can, dear Sir, to have patience towards everything that is unresolved in your heart and try to love the questions themselves like locked rooms or like books that are written in a remote foreign language. Do not search now for answers that cannot be given to you because you would not be able to live them. And everything has to be lived. Live the questions now. Perhaps you will then gradually live your way, without noticing, into the answer some day. Perhaps indeed you have the capacity to educate and develop others as an especially happy and pure way of life; train yourself for this - but accept what comes in great trust, and as long as it comes from your will or from some innermost need, take it on yourself and hate nothing. Sex is difficult, yes. But it is a difficulty that is imposed on us; almost everything serious is difficult, and everything is serious. If you can only recognise that and manage to attain a relationship to sex that is entirely your own (not influenced by convention and custom) from your own inner disposition and nature, your experience and childhood and strength, then you will no longer have to fear losing yourself and becoming unworthy of your greatest possession.
Bodily pleasure is a sensual experience that is no different from pure looking or the pure sensation with which a beautiful fruit fills the tongue; it is great, infinite experience that is given to us, a knowledge of the world, the wealth and splendour of all knowledge."

Rainer Maria Rilke in Letters to a Young Poet

(Excerto retirado de uma das minhas 'cartas' preferidas, a carta de 16 de Julho de 1903. Uma boa maneira de fechar estes diários de férias, pareceu-me.)

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

diário de bordo - amanhã

Certos dias secam tudo. E secando a capacidade de proferir uma palavra como poderão não secar a possibilidade de escrever? Há sempre amanhã. E com ele, virá o mar. Hopefully.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

diário de bordo - papoila

Na praia soprava uma brisa, como todas, querendo ser suave e temperando o calor. O mar, em vagas pacíficas e largas, chamava. A mulher deixou-se estar, imaginando, a água tinha sempre nela um efeito poderoso. Uma onda, depois outra e mais outra. Deu por ela a mergulhar de corrida, sorrindo, como se tivesse menos trinta anos e a vida fosse mais ligeira. Esqueceu tudo e deixou-se voar por momentos cheios de palavras doces e gentis que denunciavam o despertar pelo que há muito ansiava. Dentro de água, uma papoila imaginária flutuou e quis beijá-la de forma delicada. A mulher fechou os olhos e ofereceu-lhe a sua pele macia.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

diário de bordo - o descanso de Rilke

Os livros são pessoas. Alguns deixam-me indiferente, outros enervam-me ao ponto de os deitar fora (literalmente, não sou capaz de oferecer um livro que não aprecie, seria como apresentar  alguém desprezível), e depois existem aqueles por quem me apaixono ao ponto de os guardar com mais ternura e cuidado do que os que empregaria noutro objecto, por muito valioso que fosse. Não é fácil dizer adeus a um livro destes. 
Além das histórias, dos personagens, das viagens, os livros tocam, mexem com sentimentos e lembranças, despertam dúvidas, fomentam a descoberta ou trazem sintonias maravilhosas que são autênticas comunhões de alma. Por isso são tão difíceis de abandonar. Eu acabei dois assim. E quando isto me acontece, sei que não posso de imediato entregar-me a um possível novo enamoramento, apenas há uma solução, voltar a uma antiga paixão para fazer um intervalo e ganhar fôlego. Assim será hoje. Retorno às Cartas a um jovem poeta que, espero, me farão enfrentar Rayuela de Cortázar, com tudo o que merece.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

diário de bordo - excertos inesquecíveis II

"A compensação de se envelhecer, pensou Peter Walsh ao sair de Regent's Park, de chapéu na mão, era simplesmente aquela: as paixões continuam tão fortes como sempre, mas obtemos - finalmente! - o poder de adicionar o sabor supremo à existência - o poder de apreendermos a experiência, de a fazermos rodar, lentamente, sob qualquer luz."

Mrs Dalloway, Virginia Woolf.

diário de bordo - excertos inesquecíveis

"E - continuou ela - , há outra coisa que acabará por descobrir por si próprio. Há no amor alguma coisa (não direi que seja um defeito do amor porque o defeito está em nós próprios), mas qualquer coisa que não compreendemos na sua natureza. Por exemplo, o amor que sente por Justine não é um amor diferente por um objecto diferente, mas o mesmo amor que sente por Melissa tentando realizar-se através de Justine. O amor é terrivelmente permanente e cada um de nós só tem direito á sua pequena porção. Pode aparecer sob uma infinidade de formas e prender-se a uma infinidade de pessoas. Mas é limitado em quantidade, e não pode esgotar-se e desaparecer antes de alcançar o seu verdadeiro objecto. O seu sentido oculta-se algures, nas mais profundas regiões da alma, onde acabará por se reconhecer como o amor de si, o terreno sobre o qual construímos uma espécie de saúde da alma. E isto não é egoísmo nem narcisismo. "

Clea em Justine, de Lawrence Durrell

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

diário de bordo - justine

Estou quase a acabar Justine, de Lawrence Durrell. Como sempre, há páginas marcadas, excertos sublinhados, mais ainda num livro que está comigo há mais de vinte anos e cuja primeira leitura me impressionou muito. Agora percebo melhor a razão, as razões. Talvez eu me encontre, assustada, em muitas das palavras que ali se juntam formando frases e significados. Prometi partilhar, não foi? Assim farei. E ao fazê-lo, estarei mais perto. Believe me.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

diário de bordo - memórias de algodão


Tinha vinte e um anos e a rede de comboios chamava-se Amtrak. Estava a meio de uma viagem a solo, pela costa Este dos Estados Unidos. O transporte avançava preguiçosamente pela Georgia. Com a testa encostada ao vidro, ela viu pequenas partículas brancas deslocando-se pelo ar. Pareciam flocos de neve confusos, num dia de Verão. A mulher recordou a sua infância. Olhou em redor: a carruagem estava quase vazia, à excepção de alguns passageiros, dormitando. Sem reflectir, seguiu o seu impulso de menina recém-despertada: encostou a língua ao vidro e imaginou o sabor  macio e fresco da neve nos seus lábios. Logo depois, adormeceu e sonhou, a inconsciência levando-a por entre os braços doces do algodão.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

diário de bordo - na primeira casa de todas

Quando éramos pequenos, a casa dos meus pais era suficiente. Hoje, é grande de mais. As memórias viajam pelos três andares, conversam com os livros, antigos e novos, que sempre tiveram espaço importante nas nossas vidas. Olhar para os quartos causa agora estranheza, como se estivessem adormecidos num sono profundo que se iniciou no momento da saída de cada um dos filhos. 
Difícil ver uma casa, outrora tão cheia, agora recheada de pequenos sussurros do passado. É que se nos Invernos éramos seis, nos Verões chegávamos a ser mais de vinte, quando vinham os abuelos, os tios e primas de Espanha, a irmã casada no Chile e os filhos, o irmão mais velho. Subíamos e descíamos os três lances de escada, dezenas de vezes por dia no tráfego intenso das famílias, em passos barulhentos durante o dia ou no nosso caso, as mais novas, pé ante pé a horas avançadas da noite ou madrugada, para não despertar a ira do abuelo Jesus, conservador de gema na sua alma de castelhano verdadero. No presente, vejo os meus pais calcorrearem a escadaria e custa-me. 
A esta altura não sei se gosto desta nossa casa. Acho que na minha alma que acredita na necessidade da mudança, preferiria vê-los num lugar mais pequeno, mais liberto de passados, num piso apenas que os acolhesse, os mantivesse confortáveis e cheios de luz. Mas isso sou eu e não tenho o mais pequeno direito de mudar a vida de pessoas tão inteiras que nos deram tanto. Por isso, acabo sempre por voltar ao mesmo estratagema que me ajuda a reduzir a dissonância: ao terceiro dia, procuro enxotar as recordações ou fingir que não as vejo e, ao olhar para as mais de duas dezenas de degraus, penso que o exercício lhes fará bem ao coração.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

diário de bordo - mar adentro

A mulher nadou, nadou, nadou, até quase deixar de ver a praia. O mar era, não raras vezes, a sua zona de escape, o seu modo de meditação, com tudo o que isso implicava, por vezes serenidade, outras tantas profundidade e escuro, receio, dúvida. Viver era isso mesmo, essa forma estranha de equilíbrio entre forças divergentes.
Hoje, o mar estava cristalino, verde-esmeralda.
A mulher susteve a respiração e mergulhou. Sentou-se no fundo e deixou-se estar no silêncio belo. Recordou-se de todas as vezes em que submergira mais fundo, muitos pés abaixo do nível da superfície e em especial daquela, nocturna. Em certa ocasião, mergulhara numa baía particular onde vivem micro-organismos que se defendem projectando uma luz de néon absolutamente azul. Envolta nesse halo incrível, ela ficara no fundo e sentira a vertigem do deixar-se ir, abandonando-se mar adentro...
A reserva de ar começou a esgotar-se. A mulher empurrou a areia com os pés e voltou à superfície. A saudade era tramada, era sempre tramada.

domingo, 4 de agosto de 2013

Diário de bordo - a música das palavras

Para ela, as férias começavam no momento de estar de pé, diante da sua biblioteca. De braços cruzados, de frente para os livros, tinha tempo, esperava. Bastava reservar um pouco, uns minutos apenas, e a maravilha começava. Pouco a pouco, alguns começavam a sobressaír, chamavam por ela, exigiam sem escolhidos. Não sabia porquê, mas sempre acontecia dessa maneira. Então, retirava os eleitos das estantes, quase pedindo desculpa aos demais. Esses seriam os seus companheiros nas férias, era inevitável. Contudo, era frequente acontecer outra coisa: a falta. Aquele era o momento da livraria e aí, o processo repetia-se. A mulher podia pedir títulos, clamar por autores, mas apenas aqueles que deveriam viajar com ela estariam disponíveis. Assim aconteceu este ano, de novo. Na loja, referiu cinco, somente um a pôde acompanhar. Na mala, além de Juliano, de uma sereia imaginada por um moçambicano e das cartas de um jovem poeta, a mulher leva consigo Mrs Delaware, uma música nova, desconhecida, para o seu coração.

sábado, 3 de agosto de 2013

férias grandes

Em pequeninos chamávamos-lhes férias grandes. Para mim, eram enormes, imensas no reencontro de Espanha, dos abuelos, de tios e primos queridos. Inesquecíveis nas festas de Navarra de onde guardo memória de tradições maravilhosas como o juego de pelota, o cantar delicado de grupos de homens de casa em casa, los gigantes y cabezudos, as danças populares nas praças lindas e bem cuidadas dos pueblos. Ali conheci primeiros amores platónicos, tomei contacto com a musicalidade estranha da língua basca, numa província onde a hospitalidade não tem a hipocrisia do turismo mas antes uma espécie de orgulho semelhante ao de Ocatarinetabelachichix,onde apenas serás autenticamente bem vindo se te aceitarem como fazendo parte.
Como uma brisa do sul que se deslocasse em viagem ao norte recolhendo pequenas amostras à passagem, prometo ser delicada no transporte cuidado dos pormenores para contar os odores, as sensações, as cores, as emoções, em bocadinhos, ou todos de uma vez. Prometo.


quinta-feira, 1 de agosto de 2013

violeta

Ela tinha um escritório que parecia uma casa pequenina. O espaço ficava num pátio adorável, um dos muitos lugares escondidos desta cidade que parece uma mulher misteriosa, cheia de curvas e recantos silenciosos. Ali, convivia com uma loja de flores, uma companhia que vendia lugares de sonho noutras paragens, designers e um atelier de reparação de móveis antigos cuja dona recuperava memórias de família espalhando fados em voz alta e despudorada. No primeiro Inverno, romântico como o Natal dos sonhos das crianças, sentiu-se transportada a outros lugares; olhando pelas janelas grandes imaginava-se facilmente em Nova Iorque, nos anos setenta de que gostava tanto mas que apenas vivera com poucos anos, embora envolvida pelas músicas dos irmãos mais velhos que lhe tinham criado o bichinho da curiosidade. Era bom estar ali. Aquele escritório tinha sido a sua primeira libertação das grandes empresas onde trabalhara e onde aprendera a detestar as guerras de personalidades; em definitivo, descobrira que a política, com a sua guerrilha e manipulações obscuras não eram nem o seu forte nem o seu ideal de vida. Ela era demasiado directa, demasiado transparente. No pátio, tinha o seu lugar, a solidão que prezava, a independência, a responsabilidade total. Ela gostava disso. Quando chegou o vigésimo primeiro dia de Fevereiro, ofereceu-se um presente de aniversário: um bonsai gigante a que chamou Golias. Era uma árvore generosa, de folhas verdes, carnudas e brilhantes, um super homem, poder-se-ia dizer. A mulher amou o Golias como amava os jacarandás da avenida que conduziam ao escritório mas nessa altura ainda não sabia quanto. Chegou a primeira Primavera e as árvores cantaram de verde. E, já bem próximo do Verão, começaram a colorir-se de violeta e do perfume mais doce do mundo. A avenida não era bonita, nela se misturavam os mais variados cheiros e, em certos dias, a calçada estava suja e peganhenta. Mas era inevitável olhar apenas para o lilás e agradecer. 
A vida mudou. A mulher está noutro lugar, com muitas árvores, lindo também, mas sem jacarandás e sem Golias. Hoje completam-se dois anos desde que deixou o escritório que parecia uma casa pequenina. E até ela que acredita nos ciclos, no fechar necessário de portas sem olhar para trás, não pode deixar de sentir essa palavra tão bonita chamada saudade.

quarta-feira, 31 de julho de 2013

concretizar

A mulher não deu pelo tempo, como não o sentia numa boa conversa. Mas era trabalho o que a fazia esquecer os segundos, os minutos e as horas, e ela gostava de trabalhar, sobretudo quando lhe punham no colo o que nunca tinha feito e que alguém achava que ela seria capaz de realizar. Eram os momentos da vida das dores de barriga suficientes como para se agitar a si mesma e desafiar-se, nada melhor. Este era o caso, hoje. Um conceito para uma exposição que tinha feito nascer e que principiava a tomar formas concretas. A mulher, visualizando tudo, como já era sua prática, imaginou a montagem, as reuniões com os artistas, o assistir da abertura por detrás de uma porta. Ela sempre gostara dos bastidores, da preparação, pôr as mãos na massa e fazer uma ideia crescer. Era lindo. Era concretizar. Afinal, as ideias não servem da nada se não lhes deitarmos a mão.

terça-feira, 30 de julho de 2013

smile, please.




it's. oh. so quiet
it's oh. so still
you're all alone
and so peaceful until...

you fall in love
zing boom
the sky up above
zing boom
is caving in
wow bam
you've never been so nuts about a guy
you wanna laugh you wanna cry
you cross your heart and hope to die

'til it's over and then
it's nice and quiet 
but soon again
starts another big riot

you blow a fuse
zing boom
the devil cuts loose
zing boom
so what's the use
wow bam
of falling in love

it's. oh. so quiet
it's. oh. so still
you're all alone
and so peaceful until...

you ring the bell
bim bam
you shout and you yell
hi ho ho
you broke the spell
gee. this is swell you almost have a fit
this guy is "gorge" and i got hit
there's no mistake this is it

'til it's over and then
it's nice and quiet
but soon again
starts another big riot

you blow a fuse
zing boom
the devil cuts loose
zing boom
so what's the use
wow bam
of falling in love

the sky caves in
the devil cuts loose
you blow blow blow blow blow your fuse
when you've fallen in love

ssshhhhhh...

(Uma das minhas músicas favoritas de sempre, re-descoberta hoje em versão clip. Baaaam!)