segunda-feira, 23 de agosto de 2010

pré-limpeza

Pré-férias significa pré-limpeza. Gosto disso, é a minha prática de há uns anos a esta parte, só agora plenamente consciente. Todos os anos, antes do descanso e da reflexão anual, limpo a despensa, não a de casa mas a da vida. É recorrente: como se preparasse um ano que está prestes a findar, procuro ir de férias sem nada por dizer, sem amigos por acarinhar, sem pendentes por resolver, sobretudo aqueles que me incomodam ou os que pela força das circunstâncias fui deixando para trás. Estou a acabar de riscar a lista e a cada risco que faço fico resolvida, tornando mais claro aquilo que era cinzento ou difuso. Alguns assuntos deixam-me mais triste ou nostálgica, outros mais aliviada, mas sempre mais limpa. É assim que gosto de ir abandonando os anos: sem lastro, sem pesos, que a vida é demasiado curta e à medida que por ela vamos passando mais claro se torna que só o bem nos faz bem. Ser consciente por vezes dói mas só a dor enfrentada cicatriza. E as cicatrizes, como as rugas, contam a história da nossa coragem: a coragem de viver esta existência em vez de simplesmente passar por ela. A nossa vida está sempre nas nossas mãos. Quem não acredita, é cobarde.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

mais nada

Ele ao lado, as crianças a dormitar e um livro nas mãos.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

deixar nos risos o cansaço

Uma delas tinha avisado: 'vou atirar-me para cima do teu sofá, soltar este cansaço que não me larga, fumar os últimos cigarros da minha vida; por isso, espero que tenhas boas histórias para me contar'. Jantaram juntas e apenas elas, sem precisar de mais ninguém, trocando risos, confidências, derramando rosé gelado na irritação de uma traição de outrem, comovendo-se com pequenas coisas, partilhando a maturidade, descobrindo a paz que é sempre possível reencontrar.
Eram três da manhã quando olharam uma para a outra e quase morreram de riso: definitivamente estavam ambas atiradas para cima do sofá, duas adolescentes crescidas, os joelhos dobrados, os pés nús, o cinzeiro cheio e ainda muito por rir e conversar.
Quando a do aviso saiu, a brisa da madrugada refrescou-lhe a cara. Sentia-se leve como se tivesse deixado nos risos todo o cansaço.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

a corrente invisível

Havia muita gente. Muitas pessoas conhecidas, outras não. A festa desenrolava-se lá fora, com a brisa morna do rio e a meia lua a aparecer no céu. À distância, ela olhou para ele procurando a corrente invisível. Ficou tão incomodada com o que não viu que descobriu uma desculpa, apressou as despedidas e foi-se embora.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

empurrar a vida com a barriga

'Empurrar a vida com a barriga" é uma das melhores expressões que alguma vez ouvi para descrever a eterna actividade da Mulher. Neste momento confesso: a minha barriga está cansada. Talvez por isso a cabeça me doa todos os dias.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

um grande dia

A praia estava cheia de gente. Cheia como me recordava dos meus tempos de menina, não naquela praia mas noutras mais a Sul, as crianças rebolando nas ondas sob os olhares atentos dos pais vigiando as ondas irrequietas, as famílias nos toldos comendo gelados, os grupos de adolescentes em estrela na areia mostrando os corpos jovens e os cabelos brilhantes. Estendemos as toalhas, partilhando com os amigos um dia simples, daqueles mesmo triviais, onde não faltam as fotografias da praxe ao bebé que se delicia com os primeiros grãos de areia, as carreirinhas dos mais novos, as conversas sobre tudo e nada. Eram sete da tarde quando nos despedimos, cheios de pena por não ficar para jantar. No carro, o bebé adormeceu com um sorriso de felicidade, a pele ainda com restos de praia e eu nostálgica de sensações de há muitos anos atrás. Foi assim o sábado na Praia Grande. Um grande dia.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

mais um bocadinho de bem

Os médicos das plantas vieram. Com cuidado, como se transporta um doente, pegaram nele e levaram-no para a enfermaria das coisas verdes que parecem não falar.

Depois de uma hora voltaram: a terra tinha sido renovada, acrescentada de casca de pinheiro, humedecida e vitaminada; a ele tinham-lhe roubado os ramos e as folhas que pareciam querer tirar-lhe a vida.

O meu grande Golias, o meu bonsai-ficus gigante de um metro e sessenta, lindo de morrer, está agora pronto para mais alguns anos de vida, sabedoria, e todas as tantas outras coisas que, em silêncio, sem interferir, vão plantando mais um bocadinho de bem na minha vida.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

finalmente vieste

Bateu à porta do céu e disse
'Não venho para ficar, é só uma visita de reclamação.'
O anjo, com ar inteligente, abanou a cabeça como se soubesse muito antes de ela chegar.
'Venho reclamar energia e perguntar por que razão ma retiram todos os meses como se precisassem mais dela do que eu.'
O anjo sorriu e disse apenas
'Não é para nem por mais ninguém. É só para tomares consciência do quanto a necessitas. Por isso te obrigamos a parar, mês a mês, há já alguns anos. Todos os dias da falta esperei que me batesses à porta. Finalmente, vieste, e ainda bem. É bom sinal.'
Regressou ao escritório e assumiu o arrastar dos minutos fazendo apenas o que lhe apetecia como um direito. Hoje, sim, tinha aprendido alguma coisa sobre si mesma.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

frase do dia

To do just what is expected of me is no fun.
Jimmy Breslin

terça-feira, 10 de agosto de 2010

a segunda parte apenas

Olhou para os mil papéis, fez uma infinidade de telefonemas. A única solução foi,mais uma vez, naquele ano, fazer ginástica; não a física mas aquela a que se chama financeira. Eram dez da manhã e já se sentia esgotada. Percebeu por fim que talvez tivesse sido mal educada: neste mundo impera o princípio de 'pagar e morrer, quanto mais tarde, melhor". Ela só tinha conseguido aprender a segunda parte.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

por onde começar

Na volta das primeiras mini-férias os dedos parecem emperrados e o cérebro luta pela primazia das múltiplas coisas a descrever. O primeiro recado fica dado: não sei por onde começar. Preciso de férias.