sábado, 28 de setembro de 2013

de volta

Os lençóis são brancos. As paredes são brancas. A roupa que ela veste é branca. Existem múltiplos pormenores de cor espalhados pela casa mas a mulher sente tudo branco porque o branco para ela, é. São pés descalços na madeira fresca sem necessidade de defesa, enraizando-se. Pele nua diante de um espelho que desperta um sorriso, sem pudor. 
Hoje ela vê tudo branco e recorda em silêncio. Recorda tantas coisas escondidas, empurradas para um certo escuro de dentro. Ao fazê-lo, surgem todos os passos, todas as curvas; o trilho do caminho de volta finalmente reapareceu.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

talvez



Talvez seja da bruma. 
Da humidade tão fina que se sente nas pontas dos dedos. 
Do odor fresco. 
Não importa o quê. 
Apenas sei que estes dias me devolvem o cheiro da terra, 
o céu gigante com todas as constelações à distância de um braço, 
a natureza fértil, feminina, 
a dádiva avassaladora. 
Nestes dias, transporto-me inevitavelmente a África. 
E sinto saudades. 
Esta é uma semente que conheci tarde mas que, apesar de tudo, 
se plantou bem firme, 
feita raíz poderosa como a de um embondeiro.
O nosso coração não tem tamanho.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

nick


High Fidelity é um dos filmes da minha vida. Acho que já o vi dezenas de vezes e sempre que aparece perdido num canal qualquer é difícil resistir ou não ficar irritada por ter perdido o princípio, o meio ou estar perto do fim. Comprei o livro quando saí do cinema e, estupidamente, depois não o li, abafado como foi por todos os outros que ocupam as minhas estantes, talvez mais ciumentos ou sedentos de atenção. 
Acontece que os livros (ou os autores) não desistem do leitor; por mais anónimo que seja, insistem, procuram, arranjam o veículo certo, e chegam. À pessoa que os deve ler. Nick Hornby chegou a mim com 31 songs, as canções que fizeram a diferença na sua vida. Concorde-se ou não, conheçam-se ou não, não importa. O que faz sentido é o porquê na sua forma de amor pela música ou por aquilo que ela nos traz:
"All I can say is that I can hear things that aren't there, see and feel things I can't normally see or feel, and start to realize that, yes, there is such a thing as an immortal soul, or, at the very least, a unifying human consciousness, that our lifes are short but have meaning."
Tudo isto referindo-se a...música. Claro que sim. Pois claro. Como eu o compreendo. Agora percebo muito mais sobre mim mesma. É lindo quando um livro faz com que fiquemos mais próximos de nós.

domingo, 22 de setembro de 2013

nas entrelinhas

A mulher decide que vai finalmente escrever a história do anjo, o conto que surgiu como que por magia, empurrado por uma música longa, estranha e triste que tinha feito crescer imagens diante dos seus olhos. Era a história de uma queda e de uma certa ressurreição pela morte. E, afinal, não é sempre? Talvez devamos morrer muitas vezes em vida para poder tornar a ela e vivê-la, a cada vez ultrapassando um degrau ou as pedras da vertente, mais preparados para o que mais vier. Se não, a morte verdadeira, real, não apenas do espírito mas igualmente do corpo, será certa. A mulher não a deseja e por isso vai escrever, vai escrever até lhe doerem as mãos. Ela sabe que, ao fazê-lo, coserá nas entrelinhas a sua própria vida.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

mais nada

Mãe, tenho saudades de ti.

Mãe, tu és a princesa e eu o caçador, sim? 
Eu defendo-te dos monstros e dos gigantes, ok?

Mãe, gosto muito de ti.

A conversa telefónica começou e acabou assim, deixando-me sem palavras como este miúdo pequenino me deixa sempre, em todas as vezes (e são muitas) em que diz estas frases. E o mais importante, o mais comovente, não são os termos mas antes o sentimento e a forma, a verdade. Com tanto, não consigo dizer mais nada. Absolutamente mais nada. 

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

sede

Esquecidos. Abandonados. Adormecidos. Num sono profundo, bem perto do sono dos contos infantis, aquele de que apenas se desperta com a lembrança ou a salvação. Assim estavam eles, encostados às prateleiras, encostados uns aos outros, como que suportando-se. Mas, naquele final de tarde, um deles estremeceu pelo contacto com os dedos de uma mão, os outros escorregaram como um dominó. Estremunhados, acotovelaram-se e depois fizeram silêncio. Veio o espanto e o sorriso. Era a música. A música tocava o ar, perfumando-o com notas arrumadas; ela regressara, procurando as melodias como sempre fizera. Com sede de harmonia. Os discos tinham saudades daquela mulher, agora tinham consciência disso depois de um sono demasiado longo que quase lhes roubara a vida.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

tic tac

Na casa do meu avô, havia um relógio de parede com mais de duzentos anos. Na casa do tio António, um relógio de cuco e um de chão, vertical, que nos reconfortava com o Big Ben. E na casa do tio Jose, em Puerto Rico, havia muitos que cantavam de hora a hora, quase rivalizando com os coquis, uns sapinhos minúsculos que ali tornam mais melodiosas as noites.
O meu tio Jose era um homem enorme. Na altura, na generosidade e no sentido de humor. Uma destas noites, sonhei que voltava a ser miúda, e que acordara com um pesadelo do qual o cuco fazia parte. Mas o tio Jose apareceu, aninhou-me nos seus braços daquela forma que ele sabia e segredou-me uma frase ao ouvido com o sorriso brilhante dos seus olhos pequeninos. O sonho mau transformou-se de imediato em sonho bom e acordei com saudade. Fazes-me tanta falta, homem grande e gentil.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

brisa quase



A brisa entrou na praia, pediu muita desculpa à areia e disse que agora não a podia refrescar. Estava cansada. 
A areia tentou avisá-la mas a brisa, não querendo ouvir mais nada, escondeu-se no cantinho de uma concha branca e deixou vir o sono.

Brisa corre, corre feita vento doido, corre pelas estradas, varrendo espigas de trigo, pedaços de folha, pedras diminutas. O vôo, meteórico, faz a brisa-feita-vento-doido quase invisível de tão veloz, tremem as telhas dos telhados, abanam as portas e chaminés, rezingam os pássaros que voam sem querer usar as asas.
Um ruído cavo, profundo, grave, repetido, ouve-se ao longe. A brisa-feita-vento-doido abranda, e é quase-vento, quase-brisa, quase-silêncio. Avança devagarinho como o sopro de uma criança ou as patas de um gato, meio a medo. O som é seguro. A brisa-desfeita-de-silêncio enrosca-se no som e deixa-se rodopiar.

Estremeceu por dentro e acordou. 
Tonteira de sonho, pensou. 
Olhou para si e na realidade era brisa-dança.
O som sorriu.
Ela é que não quisera ligar á areia.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

rega do dia

Fazia calor. Um calor imenso.
A mulher passou de carro. Um pingo de água fresca molhou a pele do seu braço. Ela deu um salto e riu de si mesma pela surpresa. Reparou então nos aspersores que regavam as plantas sedentas. Nesse  preciso momento, Seu Jorge cantou diga eu ti amo e eu I lovi yuuuu, é um jeito quente, uma onda boa...
A mulher deu uma gargalhada, deu meia volta, espreitou e, ao não ver nenhuma possibilidade de ralhete, fez o que tinha a fazer: abriu as janelas do automóvel e deixou que a água refrescasse o carro por dentro. Seu Jorge sorriu na voz e disse 'Áuuuu'. Ela também.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

o sabor invisível de um gelado

A mulher reparou e a empregada também como as duas senhoras chegaram, de mansinho. Não viam nada, tinha-lhes sido negada essa capacidade. Pediram um iogurte gelado, entre gracejos e, sem hesitar provaram o primeiro bocadinho. As descrições eram maravilhosas como apenas alguém a quem foi retirado um sentido as pode fazer. Agradeceram e foram-se embora, de braço dado, tacteando o caminho. 
A mulher sentiu o nó na garganta e os olhos encheram-se de lágrimas. Olhou para a empregada e percebeu um estado igual. Riram-se as duas num gesto de profundo respeito pela vida. Há coisas tão mais sensíveis que o comezinho do dia-à-dia.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

viagem

O beija-flor adormecera a bordo. Quando o navio chegou ao destino, o ajustar das amarras provocou um solavanco e o pássaro despertou. Enervado, espreguiçou as asas, esticou as patas diminutas e preparou-se. O olhar dizia-lhe que se tratava de um local desconhecido; o instinto avisou que era melhor escapar. Mas havia um certo perfume no ar. E a luz. O beija-flor levantou o pescoço, era impossível desistir. Voou então depressa, descobrindo um rio de prata, edifícios exagerados de branco por uma luz que se abandonava à reflexão de forma generosa. O colibri redobrou a velocidade e aí descobriu a avenida das árvores mais bonitas que alguma vez havia visto. Aquela era a origem do perfume doce e violeta, como eram violetas as cores das flores que invadiam as árvores. O beija-flor soube então que estava irremediavelmente apaixonado. Pousou. Uma borboleta amarela segredou-lhe o nome; duas penas do seu pequeno corpo mimetizaram de imediato a cor lilás. O insecto avisou que depois do violeta chegaria o verde, e depois do verde, a ausência, o frio. O pássaro não quis saber; afinal, a vida era curta. Levantou vôo, beijou cada uma e todas as flores da avenida e adormeceu. Valia a pena. Em Lisboa, valia sempre a pena o amor.

domingo, 8 de setembro de 2013

água doce

Azul escuro. Azul noite. Azul quase negro. Azul profundo. Tinha sido assim a sua noite. A primeira em muito tempo sem se sentir suspensa numa rede delicada e demasiado frágil. A primeira em muitos dias de abandono perfeito ao sono. E porquê? A mulher amava a verdade. Todas as verdades, aliás, das mais bonitas às mais feias, das mais difíceis às mais fáceis, mas sempre verdade. A falta dela tornava-a rouca, tirava-lhe a capacidade de cantar, um aperto insuportável no peito instalava-se e a única varanda possível era a que lhe permitia mergulhar no mar. Da verdade. Hoje, a mulher era a sobrevivente de um mergulho consciente que a levara até às mais escuras profundezas, sem sombra de quaisquer medos porque era por si, tinha sido apenas por si e estava consigo. Inteira.
Na metáfora perfeita dessa noite, retirou do corpo pequenos pedaços de algas de todas as cores e acariciou as queimaduras dos vários corais de fogo. Passou os lábios pela pele dos braços e, ao sentir o sal, pensou que era o momento. Chegara o momento merecido de um beijo de água doce e macia. Um beijo longo. Para sempre.

sábado, 7 de setembro de 2013

paz

Começou miúda, miudinha, com pequenas gotas alterando a superfície lisa e quente, deixando notas de humidade ligeiras. Teimosa, ignorou a brisa e insistiu. Pequenas comportas abriram-se e, ao sentir poder, metamorfoseou-se numa torrente silenciosa mas persistente. A tempestade sobreveio arrastando tudo à passagem. A brisa pareceu perder o norte mas de súbito reconheceu a água e alinhou. 
Veio o silêncio; tão imenso que a brisa pensou ter-se transformado em vento. Calou-se, então. A paz da verdade solitária tinha chegado.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013