quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

2008

Desculpa, mas não vou ter saudades tuas. Não vou ter, não. Levaste muita gente demasiado cedo, trouxeste conflitos em catadupa que geraram guerras sem quartel, fizeste rebentar muitas crises que deixaste primeiro amadurecer em bolha para depois arderem mais rápido. Foste difícil, imprevisível, irascível, impiedoso. Por tudo isto, não te lembrarei com glória ou com a vontade de que o tempo volte atrás.

Contudo, não sou capaz de não te agradecer. Não sou, não. Todas as pessoas que levaste já não estavam bem aqui. Todos os conflitos que geraste eram necessários. Todas as crises, inevitáveis. O que fizeste foi apenas colocar muitos dedos em muitas feridas. É preferível enfrentar um touro pelos cornos do que não os ver chegar em manada. Deixas uma queimada atrás de ti. Por ela te digo obrigada. 

A terra está quente, libertando-se de porcaria e miséria, aos poucos. Que melhor terreno pode haver para semear e voltar a colher?

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Exercícios de humildade

Existem uns senhores lá em cima que de vez em quando decidem puxar-nos as orelhas e fazer-nos ver que nem sempre pode ser tudo como queremos. É como se lá do alto escolhessem todos os dias uma pessoa e dissessem "esta vai ter que esperar um bocadinho; está mesmo a precisar". Existem, claro que sim. Tive hoje a certeza disso mesmo.

Programámos cada pormenor, o meu marido esforçou-se valentemente para ter todas as coisas prontas a tempo e horas, criou tabelas maravilhosas nas quais dividimos tarefas e fizemos a planificação dos dias... até que esta coisa me contagiou (eu, que nunca estou doente!) e vamos ter de adiar uma mudança com a qual eu sonhava há muito tempo.
É verdade que uma semana não é nada. Mas é tudo para que eu perceba e reconheça humildemente que nem sempre será tudo como eu desejaria. 

Desta vez tocou-te a ti. Aguenta-te, Maria; e cara alegre, se faz favor. 

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Lawrence

O sacana deste vírus não me deixa fazer nada. A febre, em arremessos de arrepios, de espirros e lágrimas, impede-me de ler o último livro de um dos meus escritores favoritos, Salmon Rushdie. Sucumbo ao comando e ligo a televisão. Na maior parte dos canais, uma miséria. Recuso-me a ficar a olhar de cérebro parado para tanta idiotice ou tema desinteressante. Continuo o périplo e aterro no paraíso. O Telecine 3 exibe um dos filmes de um dos realizadores-argumentistas que mais admiro. Um filme que já é um senhor de idade respeitável mas que não deixa de me fazer sentido porque apesar de muitos temas da sua origem não serem os actuais, continuam a sê-lo pelos desastres humanos que provocam.
Estaciono então no The Big Chill, enrolo-me ainda mais na manta com deleite e mando o vírus à fava.

domingo, 28 de dezembro de 2008

Menina-pardalita-peixinho

Tenho o nariz a pingar, a cabeça zonza, a garganta a arder. 
Mas tu estás ao pé de mim e enches-me de ternura a cada instante. 
Não preciso de mais nada. Acho que vou parar o tempo por alguns momentos.

O tempo é o que fazemos dele

Faltam apenas 3 dias para que o ano acabe. Em 3 dias vamos recuperar histórias antigas entranhadas em objectos guardados há muito tempo, vamos imprimir outras novas naqueles que farão parte do nosso dia-a-dia a partir de agora, vamos perturbar o ambiente de uns e de outros trocando-lhes as voltas, vamos mudar de vida. Ainda dizem que em 3 dias se faz muito pouco.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Intervalo ou a crise que se lixe

Gostei. Confesso que gostei. E muito. De quê? De sair para a rua e ver as pessoas com sacos de compras, de as ver com ar sereno e contente à entrada dos cinemas com os filhos ou dentro das lojas a escolher objectos. Gostei. Acho que pela primeira vez em muitos anos, os portugueses decidiram fazer um manguito ao José, ao Costa e ao Aníbal: puseram tampões nas orelhas, decidiram que realmente era Natal. A política que se lixe. Interessa é a família e os afectos. Já não era sem tempo.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Chocolate caliente con churros

Ás seis em ponto da manhã, os despertadores tocavam. 
Estremunhados, nas nossas diferentes alturas, saiamos do quartos a bocejar. O pequeno almoço era tomado sem vagares, os duches disciplinados e a bom ritmo: era preciso rumar á estrada o quanto antes e o meu pai não admitia atrasos.
Ainda de noite, as malas entravam na bagageira. Finalmente acomodados nos bancos do carro, partíamos, a paciência para as doze horas de viagem em doses diferentes consoante as idades. Os meus pais tinham no entanto bons truques para passar o tempo

"Ainda falta muito, pai?"

"Tens de contar trinta touros da Osborne."

Ninguém chegava sequer ao quinto; eu, pelo menos, nunca consegui. O ram-ram do automóvel embalava-me e acabava por sucumbir num sono profundo (também ajudada pelas maravilhosos comprimidos de Vomidrine que evitavam as indigestões desagradáveis da primeira refeição da manhã, causadas pelas curvas e contra-curvas). Quando acordava, era com o sotaque feliz da minha mãe a dizer ya estamos en España. Nessa altura, saltávamos dos bancos para acolher com prazer o cheiro adocicado e forte dos Ducados, misturado com o café con leche da praxe.

Às seis da tarde, dependendo do estado das estradas e da neve que todos rezávamos por ver em Navalcarnero, entrávamos em Madrid. As bocas sucumbiam ao brilho das luzes, os olhos brilhavam de contentamento com a azáfama seca e fria da cidade.
No bairro de Arguelles, o meu abuelo Jesus passeava-se na rua, nervoso, esperando a nossa chegada com impaciência. Na minha visão diminuta tinha muitos metros de altura e uma calvície bem aparada que tapava elegantemente com um chapéu cinzento de aba larga.

"Abueeeloooooooo!!!"...

... Gritávamos do carro, já esquecidos das longas horas, da falta de posição, dos touros da Osborne que pareciam nunca mais acabar. E depois vinham os abraços, os beijos, o olá á porteira de toda a vida, o elevador sempre com o mesmo cheiro... e a abuela Carmen, a querida abuela Carmen, pequenina, mas sempre empoleirada nas cadeiras a pendurar guirnaldas de Natal.
Os dias que se seguiam eram um sem-fim de manhãs acordadas pelo odor do chocolate quente con churros, de tardes ansiosas pela espera dos tios que chegavam de outros pontos de Espanha, do desenferrujar do castelhano em conversas intermináveis de primos que se querem como irmãos.

Não tenho consciência da primeira vez mas sei que assim passei muitos anos da minha vida, celebrando Nochebuena a 24, Navidad a 25, Nochevieja a 31. Que me perdoe o meu lado português mas são nomes muito mais bonitos para as noites das últimas semanas de cada ano. Ou talvez seja o peso das minhas memórias que os recheia de significados doces e de brilhos nas palavras. Não faço a menor ideia nem procuro a explicação: tenho apenas a certeza que é por causa deles que me sinto sempre nostálgica a 23 e que transporto comigo o dever tão grato de conseguir passar aos meus filhos uma lembrança que também eles possam guardar no nariz, na pele e na boca por muitos e longos anos, de forma a espalhá-la por aqueles que serão os seus, para todo o sempre.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Aliança eterna

- Está preparada para que este bebé seja muito mais irrequieto, exigente e provocador que o seu filho mais velho?

- Sim, estou.

- Está preparada para a carga do sistema que ele vai trazer que não é o seu?

- Sim, estou.

- Está preparada para ser a firmeza serena de que ele vai necessitar?

- Sim, estou.

- Também acho. Tal como um bambú, é suficientemente flexível como para poder dobrar-se com o vento; mas tem a estrutura suficiente como para nunca quebrar.

Corei. 
Nunca me tinham feito um elogio tão bonito. 
Nem perguntas tão pertinentes.
De facto, não são necessários padrinhos, testemunhas, conservadoras de Registo Civil ou assinaturas no papel: ter um filho é mesmo um casamento para toda a vida.

domingo, 21 de dezembro de 2008

Abraço de anjo

Viam televisão de fim-de-semana de férias, os dois deitados no sofá, as pernas dele mais crescidas que as dela, as mãos ainda infantis a esticarem os dedos de dia para dia, sabendo que mais cedo ou mais tarde superariam os da mãe.

- I love you...

Disse ele, passando o braço de doze anos por trás do pescoço dela como um adulto e abraçando-a com o da frente como fazem as crianças.
Confortada, ela sorriu

-I love you too.

Agarrou-se ao filho com força. Não havia dúvidas, nunca as tivera. Aquele menino sempre fora um anjo adivinhador dos momentos mais difíceis. Agradeceu-lhe por alguma vez a ter escolhido. E agradeceu a Deus pela Graça da sua existência.

sábado, 20 de dezembro de 2008

O portão abriu-se e era diferente

O portão abriu-se e os miúdos saíram. A cara do meu repetia-se na dos outros: felicidade absoluta estampada nos sorrisos abertos mostrando dentes brancos, olhos de mil cores brilhando de alegria. Nem as mochilas carregadas ou as despedidas dos amigos faziam sombra; o motivo era importante: adeus primeiro período, adeus aulas, até daqui a 15 dias professores-chatos, professores-bons, professores-moles-a-quem-se-dá-facilmente-a-volta. Olhei para todos e senti inveja boa misturada com nostalgia: tenho bem marcada no meu interior a lembrança desses dias. 
Agora vem um tempo que parece esticar-se um pouco mais, beijos dados sem pressa, leituras em conjunto, partilha. Isto, sim, é Natal.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

A medida do muito

Só quero ficar calada, sorrir inúmeras vezes e estar em paz. É pedir muito?

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Barco eu pudesse

Hoje eu queria ser barco, barco-veleiro silencioso, onde o vento se perde e desnorteia no pano firme das velas.
Hoje eu queria ser barco, barco-veleiro suave, e acariciar a água ao de leve no casco, dizendo adeus aos peixes, saudando as estrelas do mar.
Hoje eu queria ser barco, barco-veleiro corajoso, e perder-me na imensidão do mar esperando terra firme à vista.
Hoje eu queria ser barco. 
Ás vezes é aborrecido ser pessoa. 
Mas é por ser que imaginamos.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

A minha vez

Desculpe-me o meu amor por alguma falta de atenção. 
Desculpe-me o meu filho por uma paciência talvez mais curta. 
Desculpem-me os pais e os irmãos por contactar menos vezes nos últimos tempos. 
Desculpem-me os amigos pela ausência repentina. 
Desculpe-me este blog pela falta de palavras.
Ontem não escrevi. 
Foi por uma boa causa: um projecto finalmente completado na certeza de que não poderia ter feito melhor. 
Desculpem-me todos pelo tempo que ele me ocupou. 
Mas valeu muito a pena. 
Hoje, depois das 7 da noite, mereço um doce.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Fico comigo

Quando era pequenina, visitávamos a casa de uma das irmãs do meu pai muitas vezes. Ela vivia na antiga casa do Ramalho Ortigão ali na Calçada dos Caetanos, junto ao Conservatório. A casa raramente estava vazia de gente e se o estava, os salões e os móveis faziam as despesas de muitas conversas. Lembro-me do piano de cauda parcialmente queimado num incêndio e da parede mesmo ao lado que parecia ter sido pintada com os efeitos do fumo e das labaredas. A minha tia dizia que o tio António continuava a tocar, mesmo depois de ter morrido, e que ela falava com ele, noite sim, noite, não. Eu ficava assustadíssima com estes mistérios e a casa parecia duplicar de tamanho. Contudo, todas aquelas coisas me maravilhavam e por isso adorava visitar aquela tia cheia de histórias com ou sem fantasmas. 

A tia Fernanda tinha um cabelo muito preto muito preto, que enrolava em duas tranças finas por cima das orelhas, uns olhos verde-escuro que pareciam de veludo e uma boca que ao sorrir atraía meio mundo. Fazia anos em Dezembro e as festas eram sempre de arromba, sendo que as crianças não ficavam de fora (coisa tão do hábito daquela altura); podiam correr pela casa fingindo susto por causa do Preto-Vicente que, mesmo tendo muita idade para ter juízo, regredia dos seus dois metros aos nossos escassos centímetros para nos entreter com todo o gosto. Uma dessas festas foi tão divertida que fomos os últimos a sair. Eu tinha nove anos e nem um pingo de sono. À saída, o meu pai disse

"Obrigada, Fernanda, que festa maravilhosa. Só tenho pena que fiques sozinha, agora."

Ela riu-se e tudo brilhou em volta

"Sozinha, Alberto? Não fico não, meu querido: fico comigo."

Chamava-se Fernanda de Castro e escreveu muitas outras coisas que ficaram bem mais conhecidas. Mas esta frase marcou-me para o resto da vida.
Hoje lembrei-me especialmente dela porque embora esteja e vá estar grande parte do tempo sem mais ninguém, sinto especial prazer em estar comigo, o que na realidade é bem diferente de estar sozinha.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Uma força só

Quando o projecto chegou, confesso que me senti ofendida. Irritada. Desrespeitada, até. Naquele dia, tive vontade de chorar. Chorei mesmo, para quê dizer o contrário. O que o empenho nos faz... 
No dia seguinte, a fibra estava de volta dizendo-me vamos-lá-embora-deixa-te-de-lamúrias-só-está-nas-tuas-mãos-fazer-o-melhor. Arranquei, substituindo a vítima pela raiva, protegendo a sensação de injustiça com o brio e a vontade de fazer mais que bem. Convidei pessoas para participar, inundei-as com a energia da crença e deitámos mãos à obra. 
Na recta quase final, olho em volta e começo a ter muito orgulho no que começa a tomar forma com pés e cabeça. É bom. É mesmo muito bom. 
Mas o melhor de tudo, aquilo que sempre reencontro com enorme prazer, é a construção que se faz em equipa, o valor invariavelmente acrescentado que de um bom team advém. 
Que sorte tenho de ter pessoas como estas a vibrar com o meu entusiasmo e a empenhar-se como se fossem prolongamentos de uma força só.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Hector

No princípio, em Janeiro, ela disse-me que este seria um ano de força. Quis saber porquê. Tem a ver com numerología, explicou. 2008 é 1 e bissexto. E? E um é acção, mudança, terra queimada; resultado que se amplia duas vezes por ser um ano divisível por quatro. Nada será como dantes. Fim ás águas mornas, às meias tintas, aos nims da vida. Boas vindas ao vai ou racha. 
Caramba, se tem sido.Para o bem e para o mal todos temos sentido a brutalidade das mudanças que parecem surgir sem pré-aviso e sem piedade, o mundo a tornar-se diferente a cada semana que passa. Temos visto amigos a crescer e outros a sofrer. 
Quero continuar a acreditar no valor da mudança, no sentido deste 1 que tem afectado populações inteiras. Quero crer que é para alguma coisa. E verdadeiramente creio. Mesmo se me custa aceitar que a partida de um amigo provavelmente era o racha que faltava na existência dele, as meias tintas que já não podia suportar e a viagem inevitável que tinha que fazer para se libertar do fardo que era viver neste mundo.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Não me acordem que acordada eu estou




De repente, sonho com cor. Acordada ou a dormir, não interessa para nada o estado. Sonho com cor. Visualizo cor. Toco cor e transformo-me em cor.
Não sei se por necessidade, prefiro pensar que é entusiasmo mas também é outro factor que não importa: o que importa é que cor eu estou. Desconheço o culpado. Sei apenas que tanta cor de espírito me faz sentir bem. 

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

coisas que eu não sei dizer II

"A esperança tem duas filhas lindas: a indignação e a coragem. A indignação ensina-nos a não aceitar as coisas como estão; a coragem, a mudá-las."
Santo Agostinho

Arrepiei-me ao ler estas frases talvez por serem a minha prática desde pequenina. Obrigada querida Pat pelo teu "Silêncio de Deus" que, entre outras coisas, me deu esta, dando substância àquilo a que todos sempre designaram como a minha inconsciência. 

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

coisas que eu não sei dizer

"Você ganha forças, coragem e confiança a cada experiência em que enfrenta o medo. Você tem que fazer exactamente aquilo que acha que não consegue."

Eleanor Roosevelt

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Um filho sempre de dois

Olhou para ele e sentiu-se segura. O filho era de ambos e era assim que ela o sentia. Por isso não comungava dos sentimentos próprios das mulheres tidas como modernas. O seu melhor amigo era, em simultâneo, cinquenta por cento do seu filho e seu ex-marido. Se havia pai com todas as letras, era aquele. "Que conforto", pensou. "Nunca estarei sozinha nesta tarefa maravilhosa de ser progenitor de alguém".

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Não.

Lá fora, não se fala tanto. Não se queixa tanto. Não se discute tanto. Não. O que há para dizer diz-se, pondo o dedo na ferida, apontando soluções. Em dois artigos no máximo, por jornal. Não se descascam as desgraças até ficarmos exaustos. Não se esticam as infelicidades até nos sentirmos miseráveis. Não se leva o pormenor sórdido ao mínimo denominador comum até termos vontade de fazer as malas e ir embora. Não. Diz-se o que se tem a dizer e o pronto que vem a seguir é anunciar como o país cresce noutros sectores, como se enfrenta a competitividade que vem de outros lados. Deve ser por isso que se vêem pessoas nas ruas com ar satisfeito. Deve ser por isso que continuam a fazer compras e a jantar fora com as famílias. Deve ser por isso que tudo tem um ar arejado e bem arranjado. Deve ser por isso que as ideias continuam a florescer.
Este nosso gene do fado é tramado. Não é o da música. Não. Esse é lindo. É o da miséria e do miserabilismo de que tanta gente se aproveita para nos deitar abaixo, e nós a ver. Graças a Deus tenho outros tantos genes a pular cá dentro. Por isso, volto a dizer: Não. Não á inércia, não ao pessismismo, não ao queixume de café. Há sempre algo a fazer. Exactamente como me disse alguém num destes dias de fim-de-semana prolongado: "sabes, niña, la crisis tambien es mucho lo que hagamos de ella... y lo que dejemos que nos hagan con ella".

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Barcelona me mata

Dragones, sílfides, hadas, demonios, brujas, flores, frutas, color y olor a mar mediterráneo. Un pez de oro. Una torre redonda inmaculada. Una familia que es iglesia y por ello sagrada. Dalí, Picasso, Miró, Tapiés y Gaudí en overdosis. Gente guapa. Mucha gente guapa. Hasta el Lunes, benvinguts a Barcelona.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Deste mundo e do outro

Olhou para o miúdo. O semblante era de adulto, sério. O que tens, perguntou-lhe. Ele respondeu que se sentia meio triste. Ela quis saber porquê. As pessoas andam todas chateadas, mãe. As pessoas andam todas chateadas, pensou ela, que grande verdade e que grande merda que isto tenha de passar para eles. As pessoas pequeninas não precisam de levar com estas coisas. É o mundo dos adultos que lhes deveria estar reservado para mais tarde. Um mundo tão cáustico, hoje em dia, que nem sequer lhes damos a benesse de passarem incólumes por entre as gotas da desesperança. Achou que devia fazer alguma coisa. No elevador, abraçou-o com beijos: nós não estamos chateados e eu adoro estar contigo. Havia mais gente no compartimento. Reparou numa velhinha de conto de fadas que olhava fixamente para eles. A senhora sorriu e disse ao miúdo: sabe bem, não sabe? A frase desfez a nostalgia dele num sorriso. As portas abriram-se e a idade dela avançou.
Antes de sair fez uma festa na pele dele: muitas felicidades para os dois; dá gosto assistir a tanta ternura. Tinhas razão, mãe, voltou a criança sem deixar de sorrir, há pessoas que não estão chateadas. É verdade, pensou ela. E são deste mundo.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

A mil

Uma estrela a pairar sobre o asfalto. Uma senhora loira com pescoço de cisne negro. Uma máquina de lavar pendurada no peito. Uma fechadura sem fechadura que é um caleidoscópio. Árvores sem tronco com copas floridas de azul. Chapéus que engolem coelhos. Coelhos que devoram tigres. Borboletas que descolam de cabeças de alfinetes. Mares de espuma e só ela....
Que bom é ter ideias. Que bom é ter ideias. Que bom é ter ideias.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Rainha da Curiosidade

Os Reis Magos adiantaram-se. Talvez por já serem muito velhinhos, trocaram as datas e deixaram-me um presente. No entanto, o rei Baltazar percebeu: "é 25... de Novembro!". Os outros acharam feio levá-lo de volta, e então fizeram-me prometer que só o abriria na Primavera. Eu disse que sim mas pedi para saber o que é: "só um bocadinho". Não me disseram tudo. Só sei que é um rapaz e que se vai chamar Vicente. Suficiente para ser o melhor que alguma vez poderia receber.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Let it snow, let it snow

Abriu a persiana do quarto: o cinzento-claro do céu acotovelou-a. Reagiu: "acorda, está a nevar!". O puto, sem tempo de esfregar os olhos, saltou nas pernas e encostou o nariz à janela. Com um sorriso sonolento, disse: "cola o teu aqui, também, mãe".
Passados poucos minutos estavam ambos lá fora, numa cidade que não era a sua, perfeitamente transformados em miúdos.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Mind the gap

Todos os anos faço questão de fazer uma viagem com o meu filho e os meus pais. Tenho a convicção de que os netos devem gozar os avós ao máximo; devem ter a oportunidade de absorver todo o seu conhecimento e experiência, até porque na condição de avô ou avó isso é muito mais agradável. Os pais sentem a responsabilidade de nos ensinar pelo que geralmente parece seca. Quando são os avós, é fantasia; são sótãos carregados de antiguidades que nos chegam em forma de fábulas. Não admira que as bocas se abram e os olhos sonhem: os pais dos nossos pais não nos transmitem conhecimento, contam-no. E isso transforma a realidade noutra coisa completamente diferente e muito mais incrível. Só que é verdade, razão pela qual depois podemos contá-la aos amigos e fazer grandes figuras com os avós que iam de barco para África e levavam dois meses in-tei-ri-nhos a lá chegar ou a bisavó indiana que casou com o capitão de mar e guerra...

Amanhã parto para Londres com os três. Em projecto, um fim-de-semana a  visitar as histórias da  Grande História. Na certeza de que pelo menos o meu filho voltará mais rico de família e os meus pais rejuvenescidos pela força do amor.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Imperfeita

Há dias tramados. Há dias em que não se consegue mesmo. Então, percebemos que também faz parte dizer "desisto", que o acto de o dizer não faz mal nenhum nem nos torna menos pessoas: a beleza também é imperfeição. Hoje é um desses dias. Escolho o azul, o eterno azul, onde me deixo flutuar sem medo do fundo... podemos sempre empurrar a areia lá em baixo... para depois regressar à superfície plenos de frescura por dentro.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Voltar

Alguém muito sábio dissera-lhe uma vez "todos nós temos uma criança cá dentro que vale a pena preservar". A frase confortara-a. Agora faziam sentido todos os momentos em que se permitia ser menina. Nesses, maravilhava-se com coisas tontas, comovia-se com a dimensão da lua cheia, tirava os saltos e pulava no jogo da macaca. 
Ela gostava. Gostava muito de se sentir miúda.
Nessa noite, as luzes acenderam-se espalhando brilhos de estrelas baixas pela cidade. A voz dela, adulta, disse-lhe "são menos bonitas". A voz de criança, agarrada ao coração, respondeu: "são as luzes de Natal; isso é que faz bonito". A boca não resistiu ao desenho do sorriso, os olhos transformaram-se em conta-gotas de felicidade. Aconteceu. Seria assim do primeiro ao último dia da época. Exactamente como todos os anos.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

As minhas Flores

Quando era adolescente tinha poucas amigas e muitos amigos. Eu não percebia porquê e tinha pena. Agora sei que as verdadeiras estavam-me reservadas para mais tarde: nesta fase da minha vida posso orgulhar-me de ter amigas daquelas que se escrevem com maiúsculas bem grandes. São todas lindas por dentro, cheias de força por fora e muitas ainda conseguem fazer parar o trânsito, embora (e isso é que ainda é mais bonito) se estejam nas tintas para o facto. Hoje almocei com uma e fiquei cheia de saudades dela; e, por pura coincidência, sentou-se-nos ao lado, outra, de quem também fiquei com saudades, razão pela qual liguei imediatamente a seguir. 
O entendimento sincero entre amigas não precisa de muitas palavras: a famosa intuição salta passos e explicações, dá sinais de alarme que fazem com que nos falemos às horas mais disparatadas, provoca ataques de riso em simultâneo sem pré-aviso e oferece consolo mesmo se separadas por um fio. A amizade entre mulheres, quando existe, é entre mulheres que antes de mais sabem estar consigo. Precisamente por saberem retiram a solidão da vida de todas porque preenchem espaços e dão conforto, mesmo não estando lá sempre... porque na verdade estão. Estão mesmo. Obrigada minhas flores.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Fechado até segunda para aprendizagem do pessoal

Abram-se os ouvidos. Aguce-se a visão. Estique-se o cérebro em forma de esponja. Liberte-se o coração abrindo todos os espaços de humildade para querer saber mais. Desperte-se a capacidade de encantamento com desconhecido. E depois, deixe-se a mão fluir, levando palavras impensadas, provenientes de lugares sem sítio, para junto de um lápis ou de uma caneta para que possam por fim explodir na forma que só a cada um de nós pertence.
Robert McKee vai estar em Lisboa amanhã, no sábado e no domingo para contar como se conta uma história. 

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

O melhor parasita do homem é um cão

Como diz o meu marido, são os maiores parasitas do mundo. Mas são também capazes de um amor sem regras que não é mutável porque fiquemos mais velhos, mais gordos, mais magros, mais cheios de rugas ou sequer insuportavelmente rabugentos. Não; gostam irremediavelmente de nós. Tenho amigos que têm cães como se fossem filhos. Muitas pessoas consideram isso excessivo ou ridículo. É desnecessário irritar-nos com elas. Mais simples é pensar  que talvez nunca tenham recebido um verdadeiro amor incondicional. Que pena.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Cada um tem um globo

"A man travels the world in search of what he needs and returns home to find it."
George Moore

Há um sufoco que me assola de tempos a tempos como um vento quente que despenteia os cabelos e seca a boca sem remédio. Nessas alturas, sei que o meu scirocco chegou e que o meu mundo diário resumiu-se a um metro quadrado. O cinto de segurança, na estrada, no ar ou no mar clamam: tenho de partir. 
Viajar é um vício. Pelo menos para mim. Consigo deixar de fumar, sou capaz de prescindir de 70% do mais puro cacau. Mas sou perfeitamente inútil na habilidade de ficar fechada no meu país. A viagem renova-me interiormente, oferece o cenário perfeito para a minha rebeldia da rotina. Emagreço de prazer com cada pormenor da preparação e da decisão de locais, visitas, contemplações; engordo na permanência a cada história desconhecida, por cada grama do ar de espanto que me enche a boca pela surpresa. Na volta, venho mais rica, mais tolerante, cheia de saudades do meu metro quadrado que novamente se transformou no país que amo.
Daqui a nada estarei em Londres. Depois em Barcelona. Conheço ambas de várias visitas. Isso não interessa nada. Sei que vou para descobrir algo mais. E sei que certamente é sobre mim mesma.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Na floresta

Caminharam juntos durante duas horas e meia. Percorreram relvados identificando cogumelos que apareciam mágicos como se adivinhassem o propósito do passeio. Descobriram os brancos, firmemente escondidos por entre os fios de relva e os outros, tristemente espezinhados pelos carrinhos. Iam vendo alguns, de quando em vez, laranjas-ocre por cima,
brancos-de-neve por baixo; ele espantava-se com eles, imaginando que o veneno lhes estava na seiva e seria capaz de trespassar borracha, sola e pele de sapatos.
Nas paredes de uma depressão na terra, fungos diferentes, de cor creme, escondiam-se aos cachos, procurando passar despercebidos.
Toda a paisagem estava envolta na atmosfera de segredos dos pinheiros, cujos ramos conduziam subtilmente o ar fresco de Inverno para a pele da cara deles, enquanto o sol os acompanhava no seu passo sem passos. Assim, namoraram. Como todas as mães e filhos namoram muitas vezes na vida. 

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Belief

Eu sei que já passaram três dias 
a realidade da eleição deste homem 
continua a fazer 
com que me belisque de manhã 
pela fé na mudança do mundo, 
pelo orgulho de acreditar, sempre.
Yes I can.
Yes you can.
Yes we can.
Yes, we all can.

Crer é poder.
(Fiquei de lágrimas nos olhos quando vi este clip por primeira vez. 
E agora, talvez por tudo se ter confirmado, pela entrega de tanta 
gente antes desesperançada, continuo a emocionar-me.)

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Só de maca e para voltar com uma criança nos braços

Ontem fez um ano que vim morar em trabalho aqui para Santos. 
Ontem havia uma prioridade mais prioritária para assinalar, mas hoje, tenho que celebrar. É um facto: eu gosto de trabalhar (arrepelem os cabelos: sim, devo ser realmente mais doida do que alguma vez imaginaram); e adoro ter a sorte de fazer o que faço e sobretudo o privilégio de onde o posso fazer. Estar neste pátio, todos os dias, inspira; mesmo quando os dias estão cinzentos sem pontinha de luz, porque nos imaginamos num bairro escondido de Paris ou Londres... só que estamos em Lisboa-Linda.  Acho que só saio daqui quando as águas fizerem o seu caminho para finalmente me darem a alegria de conhecer a cara daquele que por agora mora cá dentro. 
Mereço uma flor. E este espaço também por me dar tanta coisa sem saber.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

I have a dream

Desde miúda devoro livros. Devia ter uns catorze anos quando os meus pais deixaram cair no meu colo "O Homem", de Irving Wallace. É a história de um negro que chega a Presidente dos Estados Unidos da América por ser o quarto, pelo mero acaso de um acidente tirar a vida ao vencedor das eleições - claramente, um branco -, assim como aos três sucessores imediatos na linha - obviamente brancos, também. A trama, como uma ventosa, agarrou-me do princípio ao fim; acima de tudo, o meu fascínio residia na possibilidade inimaginável de um homem de raça negra chegar à presidência de um dos países que mais tentam disfarçar, sem sucesso, o seu profundo e arraigado racismo. Nunca me esqueci deste livro e da sua mensagem: tudo pode mudar, mesmo o que parece imutável. O dia de hoje é a prova. A América vai ter um Presidente chamado Barack, Hussein e Obama. Vai tê-lo porque a maioria dos votantes acordaram com a sua mensagem e decidiram acreditar na mensagem de um homem fora do sistema. Yes, he did it.
And I sincerely hope and pray that they let him do.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Novembro

O frio húmido trespassa o meu casaco, camisa e camisola, sem pudor e diz "cheguei". Olho para a fileira de pinheiros mais adiante: uma neblina baixa recorta-os em pedaços. Abro a boca e expiro. O calor do meu corpo embate contra a atmosfera gelada da manhã, formando fumo branco de vapor de água. Sorrio, lembrando-me dos fogareiros das castanhas, das mãos que se aquecem no fogo, do cheiro da madeira.
Fumo que sai da boca sempre me falou de Inverno e de contos de fadas, de duendes escondidos nas raízes da árvores e de dragões que só são maus porque têm que defender castelos. Todos os anos volto a gostar de Novembro. Fantasias de pequenina que graças a Deus ainda se mantêm.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Esperanza

As nuvens chegaram sem se fazer anunciar. Carregadas de fúria, negras como breu, trouxeram consigo a discórdia, o conflito, a tristeza. Deixaram-se estar, por muitos dias: o ar sufocou, ouvidos estalaram, exaustos. Ontem finalmente choveu. Copiosamente. Devassaram-se barreiras. A água arrastou mil e uma incertezas, preencheu crateras, lambeu feridas, matou a sede de fé. 
Resta esperar pelo depois, acreditando que a transparência queima e renova a terra, tornando-a fértil de novo.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Meninas-a-rir

Pertencem à família das Curcubitáceas, a mesma da melancia, do melão, do chuchu e do pepino. São primas das courgettes e e as variedades têm nomes engraçados como Abóbora-seca, Baianinha, Abóbora-menina (uma das minha preferidas), Abóbora-chila, Abóbora-porqueira, Abóbora-almiscarada ou Abóbora-carneira. Eu gosto tanto delas que sempre que as vejo faz-me pena que as cortem porque as acho muito bonitas.
O facto é que as abóboras riem. É verdade, riem de muitas maneiras. Cortadas aos pedacinhos e deitadas em água a ferver, sorriem transformadas em sopa ou creme. Com menos água e bastante açúcar, dão gargalhadas em compota; e se lhes juntarmos pinhões, ficam mais finas e apreciam a companhia de um requeijão para ficarem contentes. Podem ser assadas, cozidas em bocados gigantes e untadas com manteiga e sal: continuam a rir na mesma. 
Do que eu não gosto mesmo é de histórias de bruxas, fantasmas e coisas sobrenaturais. Sou muito Alexandra-menina, confesso, sobretudo para essas coisas. Por isso, o Halloween na sua vertente negra, não me agrada nada. Só as abóboras de sorriso estampado na cara, e sobretudo as que o fazem com ar mais matreiro, me reconciliam com esta tradição que importámos à força dos Estados Desunidos da América. Mas é porque são abóboras, o legume mais gráfico do mundo que fica bem em qualquer lado e ainda por cima nos enche de vitamina A. E por A começam todos os ataques de riso e gargalhadas.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Princesa Valente

Há exactamente dois anos diagnosticaram-lhe o que ela mais temia: um cancro. Atirou-se a ele com uma coragem que achava que nunca iria ter. Deu ao marido a força que ele não tinha, animou os filhos e distribuiu beijos pelos netos como se tivesse acabado de sair de uma operação de renovação estética de um pulmão. A energia dela era tão grande que no hospital a equipa inteira a chamava de princesa. Com toda a razão, porque é isso mesmo que ela é. 
Já passaram dois anos; ligou-me há dez minutos, recém-saída da consulta de controle oncológico. "Podemos abrir uma garrafa de champagne", disse. Disfarcei o nó alegre na garganta, deitei o suspiro de alívio para trás das costas e deixei-me contagiar pelo riso franco de 78 anos que ainda acredita ter muito para criar. A minha mãe tem as mãos mais bonitas do mundo. 

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Bica

Não ligo nenhuma à comida. Nunca liguei. A almocite-aguda-militante que reina no nosso país sempre me pareceu um exagero e uma verdadeira perda de tempo. Sobretudo quando se torna necessidade absoluta. Claro que existem excepções. Uma delas é quando se aproveita essa hora para estar com alguém que não vemos há muito tempo. Outra, é, sem dúvida, almoçar na Bica do Sapato. Aí, confesso que me torno militante confessa da obsessão do almoço. Evidentemente que, no meu caso, não é pelo menu, apesar de ser excelente. É por todas as coisas boas que emanam daquele sítio, a começar na atmosfera, a continuar no rio, a prosseguir na luz que vem do rio e a acabar no rio. Claro que os magníficos arranjos florais ajudam, a educação dos empregados também, assim como a decoração. Mas é algo mais; e quem tem a Bica sabe, e tirou partido. Fez muito bem porque faz imensamente bem. Estive lá hoje. Nem me passa pela cabeça disfarçar.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Sementes que esborracham tanques

Hoje, ela não via. Não lhe apetecia. Não conseguia. Há dias assim, pensou por instantes. Mas ela odiava abandonar-se à inevitabilidade dos momentos: sempre se recusara a ver a vida passar sobre si mesma, abanando a cabeça em negação quando os outros afirmavam em certeza-absoluta que a existência era como um tanque de guerra desgovernado esborrachando ervilhas humanas. O seu poder de mulher que domina a sua vida puxou-lhe as raízes dos cabelos com força. Obrigada a olhar para dentro, fechou-se na concha. Então, dentro do seu casulo, tomou de novo consciência: há coisas mais importantes, há sementes ainda por cima geradas pela força humana criadora. 
O pequeno ser puxou-a para si, deu-lhe um abraço milimétrico e, em sussurro inaudível, disse "não te preocupes, vai correr tudo bem"
Abriu os olhos. As cores, embora ténues, pintavam o mundo de novo.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

- Mãe, se eu fosse budista tu importavas-te muito ?
- Claro que não. Se a mãe tivesse que escolher uma religião provavelmente também não preferiria a católica. Mas por que razão queres ser budista?
- Porque é a única religião na qual o representante máximo não se julga superior aos homens.

Tenho um crente com 12 anos em casa. Assim se desfazem clichées pessimistas de adulto do tipo "estes miúdos de hoje não acreditam em nada". Dêem-lhes conteúdo para ter fé e ela aparece; nasce livre, argumentada pela cabeça deles e fora das imposições porque-toda-a-gente-na-família-é ou porque-a-nossa-cultura-diz-que-devemos-ser-assim. No mínimo dos mínimos, é bonito.

domingo, 26 de outubro de 2008

No domingo, biscoitos

Esta brincadeira começou há sete anos, tinha ele precisamente cinco. O miúdo, como todas as crianças, era fascinado pela cozinha; então instituímos que todos os anos saudaríamos a chegada do Outono, cozinhando biscoitos. Assim temos feito até hoje, com uma diferença maravilhosa: de há dois anos para cá é ele quem reclama as boas vindas feitas de farinha, ovos, manteiga e açúcar.
Este ano, incluímos mais uma novidade: o meu marido resolveu juntar-se a nós e trouxe peixinhos, porquinhos, veados, cavalos, árvores e velas em formas pequeninas que contaram outras histórias à nossa tradição de Outono. Depois, foi mais uma hora a soprar farinha e a lavar tigelas, colheres e bancada. Mas tudo isso vale. Vale muito mais que três horas passivas diante de um écran. Nada fica mais na memória do que um cheiro verdadeiro, uma gargalhada expontânea ou um conto que se desfia enquanto seis mãos desenham fantasias na massa. O meu filho é prova disso. E por isso todos os anos insiste.

Matar saudades

No sábado, éramos nove. 
Começámos por ser oito na cozinha, enquanto eu adereçava a carne com os ingredientes mais simples do mundo, entre copos de vinho saboroso, cigarros e cigarrilhas aspirados no doce prazer de muitas conversas que se cruzam e entrelaçam em abraços rendilhados. 
Fomos nove à mesa com a companhia do meu filho de doze anos, para muitas coisas mais adulto que muitos, e um verdadeiro companheiro em ocasiões como esta.
No sábado, éramos nove. 
E quando se foram embora os últimos, às quatro e muito da manhã, tive muita pena. Pena de não ter dito mais vezes o quanto gosto deles. Pena de não ter demonstrado suficientemente o gozo de os ter aqui.
No sábado éramos nove. 
Nove verdadeiros amigos. Por isso é que não é preciso dizer mais nada. Eles compreendem tudo. Muitas vezes mais do que a nossa conta. 
Voltem sempre meus queridos. 

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Sem título, sem tela


De repente era sexta-feira. Ela, embora antecipando saudades de uma cidade que só voltaria a ver quarenta e oito horas depois, dispôs-se a sentir tudo laranja e violeta pastel. Ela sabia que essa era a maneira mais bonita de fazer com que a segunda a recebesse com mais cores no arco-íris.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Cafeína e outras Ínas

Abusei do café. Fiquei cheia de speed. Senti-me a super mulher com um filho de 12 anos debaixo do braço e outro na barriga. Depois do dia de trabalho, fui com ambos às compras. Fiz 30 quilómetros para casa. Jantei às 9. Deitei o mais velho às 10.Tirei caixotes, despi os armários da roupa de Verão, vesti-os com os agasalhos de Inverno,voltei a colocar tampas e a empilhar caixas. Eram 11 da noite quando barriga e corpo deram o sinal de já chega. Arrastei-me para os lençóis a chamar-me todos os nomes. Às duas da manhã bebi um chá preparado com todo o carinho pelo meu marido. Mas era Esprit de Noel em vez de Rouge... mais teína entrou em circulação nos caminhos e auto-estradas do meu organismo. Noite em branco.Exagerei no esforço. Achei-me capaz de tudo. Hoje estou a pagar as favas mas são umas belas favas,devo reconhecer, arriscando-me a ser uma mãe inconsciente. Graças aos disparates de ontem não pude levar o meu rapazinho ao colégio.
Mimos em dueto. Surpresa-maravilha num dia de semana que ainda por cima é quinta-feira.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Who cares

Quando olhei para o relógio tinha passado tempo demais e eu abusara dos limites de leitura da minha revista das quartas. Saí. Sentei-me no carro e a cantarolar baixinho regulei os retrovisores laterais. Recuei devagarinho. Pum. Tanto acerto e esquecera-me de controlar a minha visão pelo espelho de cima. Pois. Bati num automóvel cinzento, tão cinzento quanto o casal que estava lá dentro. Saíram ambos com ar de quem todos os dias acorda disposto a embirrar com qualquer coisinha. Eu dei-lhes o mote. Depois de muito esfregar e observar descobriram uma mossa provocada obviamente pelo meu recuo a dois quilómetros por hora. Assinei o papel azul e amarelo. Segui. No viaduto, o meu caminho estava cortado, obrigando-me a entrar numa fila imensa. Quando cheguei ao escritório passava das dez e meia, hora sacrílega para quem costuma chegar às nove, como eu. Estou-me nas tintas. Hoje, o Outono assumiu-se, pleno de sol, descendo a temperatura como lhe compete. Eu avisei que gostava de Outonos assumidos, como aliás gosto de tudo na vida. Meias tintas é que não. São uma seca. E seca só quero mesmo no Verão no meio de um campo de trigo tostado pelo sol.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

H2O

Tenho muitos quilómetros de cansaço. O que me cansa, cansa-me, e eu não gosto. Faço a escolha: olho os horizontes disponíveis, perco-me neles e finalmente, salto. Pluf. Desapareci para longe. Para dentro de água, claro. Eu sou e serei sempre um pouco dela.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Nicolás Buenaventura

O homem, alto e magro, senta-se num banco de pernas compridas, resguardado apenas por uma orquestra vazia de músicos e um fundo de Deuses. 
Diante dele, um público ecléctico, assumidamente exigente, espera. 
O homem abre a boca e sem medo, avança, esquecendo que tem apenas pela frente adultos, pessoas que por se acharem crescidas talvez já tenham perdido a inocência ou a vontade de se encantar. Ou talvez não, porque estão ali. O colombiano magro, semicerra os olhos e usa os braços e as mãos, ambos longos, para complementar o seu espectáculo. Pontua-o aqui e ali, com instrumentos simples, como a cuíca. Tudo isto é acessório porque é na forma da voz metálica dele que reside a força do conteúdo.
Nicolás Buenaventura contou histórias lindas na passada sexta-feira à noite, no São Luiz, numa sala esgotada de gente crescida. O Nicolás é mesmo isso: um contador de histórias. É preciso ter uma enorme coragem. Mas ele chama-se Buena-aventura e também Buena-ventura. Acasos da vida que nunca o são.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Salta daí

- Mãe, mãe, temos um sapinho na piscina!
Ela foi a correr. Era verdade: sobre o azul-pastilha-pequena do reservatório rectangular, um pequeno sapo flutuava, os olhos vigilantes observando uma criança de 11 anos e quatro cães histéricos com a descoberta. A mãe achou que o bicho se safava sozinho mas pelo sim pelo não, e como era quase de noite, deram jantar aos cães e obrigaram-nos a ir para o canil mais cedo. Quando ele chegou a casa disse que os sapos não viviam em piscinas. Ela e o miúdo sentiram-se culpados, só que já estava muito escuro. Dormiram ambos a sonhar com rãs.

"Mãe, mãe, o sapinho continua dentro da piscina!" , voltou o filho no dia seguinte. Deixaram os cães presos a ladrar furiosos por perder tão fantástico aperitivo. Armaram-se de uma rede de cozinha e de uma tigela de vidro transparente e decidiram salvar o bicho. Por duas vezes o sapinho entrou nas caixas, frustrando as tentativas. À terceira, o miúdo descobriu como se abriam e conseguiram empurrá-lo para dentro do recipiente como se fosse um legume. Com cuidado, depositaram-no na relva.
"Salta daí, vai-te embora!", disse a criança; e o sapo, nada. Perceberam: era muita planície para tão pouco sapo. Voltaram a empurrá-lo para a tigela e, decidido, o puto levou-o para a floresta de bambus que cercava a casa. Assim que se viu entre a folhagem, o animal não precisou da ordem para saltar.

- Hoje fizemos  mesmo uma boa acção, não foi, mãe?
Ainda lhe resta a dúvida se a emoção que sentiu foi por causa da frase ou da comoção que viu nos olhos dele.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Ciccì Coccò

"A baby chick becomes adult in a few weeks, a cat in few months, a person in 13 years. In childhood we live in the state which in the far east is called Zen: our knowledge of the reality around us happens instinctively through what adults call play. All our senses are open to receive data: looking, touching, tasting, hot, cold, weight and lightness, hard, soft, rough and smooth, colours, shapes, distances, light and dark, sounds and silence... it's all new, everything is still to be learnt and play helps the memory.

Afterwards we become adults and part of society. One by one our senses close up, we hardly learn anything new, we only use reason and the word and the questions we ask are: how much does it cost? what is the use of it? What will I get out of it?

Then, once we are rich, we build ourselves a fine house by the lake and, as reminder of our happy childhood - lost forever - we put a complete set of colourful cement Snow White and the seven dwarves in the garden."

(Introdução do livro Ciccì Coccò, escrita por Bruno Munari.)

Deve ser por isto que eu ainda gosto de por o dedo no nariz às escondidas e de patinhar mil vezes a lama com umas galochas à séria, daquelas verdes. 
Obrigada querida amiga V. por este presente. Sejamos eternamente crianças por dentro e assim suficientemente mágicos como para não roubar isso aos nossos filhos. Será que sou capaz? Hoje vou partilhar uma pastilha elástica com uma amiga. Prometo.

(roubei indecentemente a foto da capa da internet mas não queria deixar de a mostrar; espero que o Bruno Munari e o Enzo Arnone não se zanguem comigo.)