segunda-feira, 31 de outubro de 2011

príncipe real

Pelas minhas duas novas janelas entra mais luz. 
Em frente tenho uma das pastelarias mais pequenas de Lisboa (os queques mais deliciosos da cidade, pãezinhos quentes todas as manhãs, arranjados com queijo ou fiambre e imenso carinho pela D.Alice), os Correios, o meu Banco. À direita, vejo a árvore imensa do jardim e, à esquerda, a rua recheada de tantas outras tentações a escorregar para o Chiado.
Mas a grande, a enorme, a imensa diferença é a luz. 
A luz física que entra por todas as frestas e poros deste edifício lindo e antigo. E a luz de queridos amigos com quem partilharei o espaço, muitas gargalhadas e, sabe Deus o que mais.
Voltei ao Príncipe. Eu sabia que, um dia, havia de regressar. Regressamos sempre aos lugares que amamos e que nos devolvem esse amor.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

bom fim de semana



(sing it!)

dar

Eu dou
Tu dás
Ele dá 
Nós damos
Vós dais
Todos recebemos


(Hoje acordei com isto na cabeça. Sera que já o escrevi? Será que o roubei a alguém? Pouco importa. O que importa é que fica aqui. E é dado.)

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

camaleão

Que personagem quero vestir hoje?
É bom achar que podemos ser muitas de uma só vez, que cá dentro moram mil mulheres, mais sensíveis nuns dias, mais corajosas noutros, heróicas por vezes, raparigas ou meninas noutras, profissionais seguras por horas, mulheres frágeis por momentos, delicadas e de lágrima rápida nos micro-segundos que se escondem na inspiração seguinte.
É bom poder ser isso tudo. Sobretudo sabendo que se pode ser isso tudo porque o que importa, o que segura, a coluna que é muito mais que coluna, o centro, aquilo que nos torna reconhecível entre mil e um disfarces de camaleão, está lá.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

esperança

Gostava. Gostava tanto de te ajudar. Gostava de ser mágica, de ter mais poder sobre o mundo, fazer aparecer a oportunidade que mereces, tudo aquilo a que tens direito, por seres o ser extraordinário que és, por teres a generosidade que tanto faz falta a este mundo, a generosidade gratuita que dá o que tem e o que não tem, sem pedir nada em troca. Gostava mesmo. Gostava tanto. E há dias como este, mais sombrios e chuvosos, em que fico irritada e triste por não conseguir. Será que os senhores lá de cima não vêem isto? Confesso: hoje estou zangada com eles. Por ti.

A mulher terminou a carta imaginária, dobrou-a no espaço até a transformar em algo minúsculo e transportável, e depois esperou que ela chegasse pelo menos no formato de uma certa forma de esperança.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

empréstimo


Filho é um ser que nos emprestaram para um curso intensivo de como amar alguém além de nós mesmos, de como mudar nossos piores defeitos para darmos os melhores exemplos e de aprendermos a ter coragem. Isto mesmo! Ser pai ou mãe é o maior ...acto de coragem que alguém pode ter, porque é expor-se a todo tipo de dor, principalmente da incerteza de estar agindo correctamente e do medo de perder algo tão amado. Perder? Como ? Não é nosso, recordam-se? Foi apenas um empréstimo.
José Saramago
(Obrigada Pat.)

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

alternativas

You want the blue pill or the red pill?


A mulher percebeu que, de vez em quando, pensava na frase, por vezes com angústia, outras vezes com distância. Hoje, a esta hora, decidiu que não desejava nenhuma das duas. Afinal, porque é que só podem existir as alternativas que alguém que não nós se propõe a definir?

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

para acabar a semana em beleza II


Politicians, like diapers, need to be changed frequently. 
Mark Twain
(and thanks again dear Sven for the oh-so-relevant quote)

para acabar a semana em beleza I




A psychologist said to me, there are only two important questions you have to ask yourself. What do you really feel? And, what do you really want? If you can answer those two, you probably can leave your neuroses behind you.
Harold Ramis
(thank you dearest Sven for this wonderful quote; obrigada Mig pelo grafitti lindo) 

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

a riqueza

Na televisão, os medos do mundo ameaçavam, procurando cumprir a tarefa diária de agitar o ser humano, deixá-lo sem acção, bloquear. Irritada, pegou no comando e tirou o som. Tudo ficava muito diferente sem as palavras, bastante ridículo até, poderia dobrar-se com vozes de um qualquer discurso, até de amor. Não contente com isso, a mulher desligou também a imagem.

Sentada no sofá, escutou o silêncio, o som de uma pausa merecida. Por momentos, reviu todos os instantes daquele dia passado a correr, sentiu-se plena. Era certo que alguma vez já fora mais rica em substâncias materiais, clara e abundantemente mais rica. Mas agora sabia como oferecer mais riqueza a si mesma por saber de forma exacta onde se encontrava o seu centro, a sua voz, e respeitá-la. Tinha-lhe custado muitos anos chegar ali; por ironia, e em contrapartida, custara muito pouco daquilo que compra as coisas materiais. Nesse momento, o filho mais velho desceu e deu-lhe um beijo de boa noite. Ela olhou para ele e agradeceu mais outra riqueza que apenas se compra com saúde e respeito e que nos devolve mais riqueza quando a ajudamos a rechear-se de amor por si mesma. A mulher deixou-se estar e saboreou. 

terça-feira, 18 de outubro de 2011

gente demasiado boa

Em Madrid, a noite estava quente e apetecível. Ela estava à porta do restaurante. Conversava com o dono que lhe dizia o quanto gostava de Portugal e o quanto pensava que tinha potencial enquanto país. Ela encolheu os ombros e referiu as últimas medidas anunciadas pelo Governo. Uma sombra de pena passou pelos olhos dele enquanto dizia:

- Conheço bem essas medidas. Os Portugueses... vocês são gente demasiado boa... se essas medidas fossem anunciadas aqui, haveria pelo menos dois levantamentos populares e o governo teria de recuar. 

Ela detestou a pena nos olhos dele embora estivesse de acordo com as palavras que a acompanhavam. No fundo, no fundo, era isso que mais a irritava. O acordo. Foi então que pensou 'Será que alguma vez teremos coragem de deixar de gostar de merecer a pena de alguém?'

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

obrigada



Para  as minhas queridas Ana, Lili, Leonor e Maria João. Elas sabem porquê.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

confortar o mundo

Teve vontade de bater no mundo: o miúdo tinha sido assaltado no caminho para casa, primeiro roubo a solo numa rua vazia. A voz ouvia-se sumida do lado de lá, entre o medo ainda recente e a pena da perda de alguns objectos queridos dos adolescentes destes tempos. Mas não tinham levado tudo: um casal de pessoas de idade compreendera a cena à distância e aproximara-se para tentar ajudar. Teve então vontade de se reconciliar com uma parte do mundo. Enviou os únicos mails realmente imprescindíveis, arrumou a secretária e seguiu veloz para casa para confortar o que restava do mundo daquele dia do seu filho mais velho.

quantas vezes celebrámos nos últimos tempos?

"A natureza tem a solução"
Satish Kumar tem 75 anos e viajou de comboio de Londres até Lisboa para dizer que temos de ir mais devagar para chegar mais longe. A semana passada, este professor no Schumacher College, no Sul de Inglaterra, e director da revista Ressurgence esteve na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, para falar do livro Small is Beautiful, de E. F. Shumacher. Na mala trouxe a inspiração da Natureza e das palavras de Mahatma Ghandi e Martin Luther King.

Acredita que a solução para a crise no mundo está no respeito pela Natureza, no amor e na confiança. Caminhou 13 mil quilómetros, sem dinheiro, numa das maiores peregrinações de sempre pela paz mundial.

- Quantas vezes já o chamaram naif ou irrealista?

- Muitas, muitas vezes. Políticos, presidentes de empresas, estudiosos, até jornalistas... (risos). Dizem-me que as minhas palavras são impossíveis e que sou demasiado inocente e idealista. Mas a minha resposta é: o que têm feito os realistas? O mundo tem sido governado por eles e hoje temos crise económica, crise ambiental, guerras no Afeganistão, Iraque e Líbia, pobreza. O nosso realismo não é sustentável. Pusemos um preço em tudo. A floresta tem preço, os rios, a terra, tudo se tornou uma mercadoria. Talvez tenha chegado a altura de os idealistas fazerem alguma coisa. Esta é a minha resposta. Se sou idealista, não faz mal. A sustentabilidade exige um bocadinho de idealismo, de inocência.

- Então qual a resposta de um idealista à crise actual?

- Esta não é uma crise económica, é uma crise do dinheiro. E o dinheiro é apenas uma ideia, um número no computador. Os realistas criaram este problema artificial e estão preocupados com a crise, voam pelo mundo, vão a Bruxelas, reúnemse com banqueiros. Mas a terra continua a produzir alimentos, as oliveiras a dar azeite, as vacas a dar leite e os seres humanos não perderam as suas capacidades. Eu diria, regressemos à Natureza. A Natureza tem a solução, dá-nos tudo o que precisamos, alimentos, roupas, casas, sapatos, amor, poesia, arte.

- Como se põe essa ideia nas mãos dos líderes políticos?

- Por exemplo, Portugal devia ter mais dos seus próprios alimentos, roupas, sapatos, mobília, tecnologia. A globalização da economia é um problema. Estamos a importar tantos produtos da China... Tudo isso se traduz em combustíveis fósseis para o transporte, com efeitos no clima. Além do mais, estamos a chegar a um pico do petróleo. Quando se esgotar o que faremos? A economia local deveria ser a verdadeira economia; a economia global seria como a fina cobertura de açúcar em cima de um bolo, com entre dez a 20% da economia.

- Mas em muitos casos é mais barato importar...

- Sim, mais barato em termos de dinheiro, mas não em termos de Ambiente porque não adicionamos todos os custos. Este é um desafio que lanço aos políticos, empresas, cientistas e jornalistas: o valor deve ser colocado no solo, nos animais, árvores e rios, nas pessoas, não no dinheiro. Se não o fizermos, dentro de cem anos teremos uma crise ainda maior. O dinheiro é apenas um bocado de papel ou de cartão, uma conta no banco. É uma medida da riqueza, como quando usamos uma fita métrica e dizemos que esta mesa tem dois metros de comprimento por um de largura. É da mesa que precisamos, mas para nós a fita métrica é mais importante. O dinheiro é útil, claro, mas é só isso.

- Parece uma ideia difícil de concretizar. Por onde começar?

- Mudando a forma de pensar. Podemos imprimir notas, criar dinheiro criando mais dívida. Mas se poluirmos os nossos rios e envenenarmos as nossas terras, não os podemos substituir. Devemos viver como peregrinos, não como turistas. O turista é egocêntrico, quer algo para ele próprio, bons hotéis, restaurantes e lojas. A sua atitude é a exigência, quer sempre mais e melhor. O hotel, o táxi ou o serviço não era bom o suficiente. O peregrino é humilde, deixa uma pegada leve na Terra, respeita a árvore e agradece-lhe pela sombra e frutos. A mente egocêntrica tem de mudar para respeitarmos a Natureza.

- Hoje conhecemos melhor as marcas dos automóveis do que os nomes das árvores...

- Exactamente. Por isso, antes de mais, precisamos trazer a Natureza para a cidade, promover uma literacia ecológica. Não conhecemos a Natureza porque a exilámos, temos medo dela. Não saímos de casa porque está demasiado frio, neve ou chuva. Precisamos de estar confortáveis, civilizados. Na verdade, somos demasiado civilizados... (risos). As pessoas das cidades, como Lisboa, precisam abrir o coração à vida selvagem, caminhar na Natureza. O fim-desemana devia ter três dias para que, pelo menos, um dia pudéssemos andar a pé no campo. Mas não de carro porque assim não se vê nada. Quando caminhamos vemos as flores, a erva, as borboletas, as abelhas. Vemos e experienciamos tudo, não é um conhecimento dos livros.

- Mas podemos estar na Natureza e não reconhecer a importância de uma borboleta ou de uma abelha.
- Não chega observar a Natureza como um objecto de estudo. Isso é uma separação muito dualista. Só valorizamos a Natureza se a experienciarmos, se nos tornarmos parte dela. A Natureza não está só lá fora, nas árvores, montanhas, rios e animais. Nós somos Natureza. E ela tem valor intrínseco. Falamos de direitos humanos, mas também precisamos de falar dos direitos da Natureza. Os rios têm o direito de se manterem limpos, as florestas têm o direito a permanecer de pé.

- Quando tinha quatro ou cinco anos, a sua mãe disse-lhe para começar a andar e aprender com a Natureza. Para nós será demasiado tarde?

- Tal como a minha mãe me ensinou a andar na Natureza, gostaria que o mesmo acontecesse na nossa sociedade. Devemos educar as nossas crianças no amor pela Natureza, aprendendo na Natureza e não sobre a Natureza, com livros e computadores. Gostaria de ver os pais a levar os filhos para a Natureza e a deixá-los subir às árvores, escalar montanhas e nadar nos rios. Para as crianças não é tarde de mais, estão prontas para isso. Talvez para os adultos seja tarde, até porque têm medo da Natureza. Mas até eles podem descobrir que passariam a estar mais inspirados, teriam mais poesia, música e arte. A nossa sociedade está a tornar-se demasiado banal e prosaica.

- Toda a sua vida caminhou. Qual foi a viagem mais importante?

- A mais importante caminhada, da Índia para a América [de 1962 a 1965], foi inspirada pelo filósofo britânico Bertrand Russell, que protestou contra as armas nucleares. Quando tinha 90 anos foi preso por isso. Uma manhã, tinha eu 25 anos, estava a beber café numa esplanada com um amigo e disse-lhe: "Aqui está um homem que, aos 90 anos, vai para a prisão pela paz no mundo. O que estamos, nós, jovens, a fazer aqui sentados a beber café?". Isso foi a inspiração. Eu e o meu amigo fomos aconselhados a partir sem dinheiro porque a paz vem da confiança e a raiz da guerra é o medo. Se queremos paz temos de ter confiança nas pessoas, na Natureza, no universo. Durante dois anos e meio caminhei 13 mil quilómetros sem qualquer dinheiro.

- E como o conseguiu?

- Fiquei em casa de pessoas que ia conhecendo. Quando não tinha dinheiro dizia que era a minha oportunidade para fazer jejum. Se não tinha um tecto, era a oportunidade para dormir sob as estrelas. Antes de partir, na Índia, disseram-me: "Vais a pé, sem dinheiro, podes não regressar". E respondi: "Se morrer enquanto caminhar pela paz isso será a melhor morte que poderei ter". Assim caminhei pelo Paquistão, Afeganistão, Irão, Azerbaijão, Arménia, Geórgia, Rússia, Bielorrússia, Polónia, Alemanha, Bélgica. Em França apanhei um barco, apoiado pelos habitantes de uma pequena localidade, e fui até Inglaterra, onde conheci Bertrand Russell. Ele ajudou com os bilhetes de barco para Nova Iorque. Daí caminhámos até Washington, onde conhecemos Martin Luther King. Foi uma demonstração de que podemos viver sem dinheiro e fazer a paz connosco, com as pessoas e com a Natureza. Neste momento, a Humanidade está em guerra com a Natureza, estamos a destruí-la. E seremos perdedores se vencermos. A menos que façamos a paz com a Natureza não poderá haver paz na Humanidade.

- O que mais o preocupa?

- A minha maior preocupação é que a Humanidade não acorde a tempo de resolver os desafios. Talvez estejamos demasiado obcecados com os nossos padrões de vida, com a dívida, o dinheiro. A sociedade industrial tem lutado pelo crescimento económico a todo o custo. Mas também tenho esperança na Humanidade, num despertar de consciências. Cada vez mais jovens me dizem que temos de cuidar da Terra e que o crescimento económico não é suficiente, precisamos de bemestar. Se as pessoas não estão bem, de que serve o crescimento económico? É um bom começo. Até porque há abundância na Natureza. Quantas azeitonas dá uma oliveira? De uma única semente, lançada à terra centenas de anos antes, obtemos milhões de azeitonas. Isso é a abundância e generosidade da Natureza.

- O alerta para a crise do Ambiente tem mais de meio século. E hoje o problema está longe do fim. É uma mensagem difícil?

- As grandes mudanças constroem-se lentamente. Quanto tempo demorou o apartheid a acabar? Nelson Mandela esteve preso 27 anos. Mas o apartheid acabou. O mesmo se passa com os direitos humanos. Quando estive com Martin Luther King, em 1964, os negros não tinham direito ao voto. Hoje temos um homem negro na Casa Branca. E quanto tempo demorou o muro de Berlim a cair? Muito tempo, uma luta longa. Não sabíamos quando o muro iria cair, quando o apartheid iria acabar. Não precisamos de saber. Estamos a construir um movimento ambiental e o momento vai chegar.

- De que precisamos para ser felizes?

- Aprender uma única palavra: celebração. Temos de celebrar a vida, a Natureza, a abundância humana. As pessoas não são felizes porque não têm tempo para celebrar. Estão sempre ocupadas, vivem demasiado depressa. Os maridos não têm tempo para as mulheres e as mulheres não têm tempo para os maridos. Os pais não têm tempo para os filhos. As pessoas não têm tempo para celebrar a Natureza. É preciso abrandar para chegar mais longe, apreciar o que temos em vez de o ignorar e querer mais. Temos muita roupa no armário, mas ignoramo-la e vamos comprar mais. O mundo tem o suficiente para as necessidades das pessoas, mas não para a sua ganância, disse Mahatma Ghandi. O universo é um grande presente para nós todos.



(Obrigada querida L. por este texto que obriga a pensar e a pôr-nos em causa.)

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

a pergunta

O miúdo mais velho voltou do jantar com o pai era perto das onze da noite. Ela acolheu-o à porta de casa e reparou no sorriso de ambos. Curiosa, deixou cair uma espécie de pergunta sobre o jantar. O filho respondeu lacónico, mantendo o sorriso: 'foi um jantar animado, sim'. Ela remeteu-se à ignorância em que sabia que iria ficar, gostou muito daquela cumplicidade assumida. Quando a relação entre pais homens e filhos rapazes é saudável, existem momentos de igual modo saudáveis e muito recomendáveis em que, verdadeiramente, menina não entra.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

venham mais cinco

A senhora, a quem ela chamava Audrey por dentro, tinha acabado a consulta. Agora podia obedecer aos beliscões da preocupação de todos os seis meses: telefonou-lhe. Do lado de lá, a voz soou segura, a médica achara-a muito bem, 'Mercedes nem parece que tens oitenta e um anos', dissera-lhe. A melhor notícia veio depois no tom desafiante com que acrescentou

Sabes, filha, em Novembro já faz cinco anos.

Soava vitoriosa a frase. Pudera. Cinco anos. Como o tempo passa depressa e suave, suave, devagarinho, nos faz esbater o horror de uns dias com a iminência de um fim que não se sabe quão perto está até que o motivo do medo toma forma, se retira e se mata. Contudo, a incerteza do até quando, persiste e dura, ano após ano. Por isso precisamos destas metas médicas, da medalha de ouro dos cinco anos. Aí respiramos de alívio, ainda que saibamos não serem garantia de muita coisa mas apenas quando se quer, quando se ama verdadeiramente a vida mais do que a vontade de descansar.

Ligeira, a sua Audrey despediu-se e desligou a chamada.
Imaginou-a no comboio a caminho da sua casa no sul, os eternos cigarros (que apenas ela fumava daquela forma) guardados na carteira, as mãos compridas e lindas desfolhando as páginas de um livro, em cada uma deixando para trás pedacinhos de medo, em cada linha agradecendo a um pulmão e meio que desde aquela época valiam por dois.

Venham mais cinco assim, pensou. 

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

e ficar com um sorriso a semana inteira

É possível tratar temas difíceis do nosso mundo de forma delicada e invulgar. 
É possível comover e fazer sorrir em simultâneo, também. 
É possível ser artista sem ser intelectualóide ou apenas inconsequente, e fazer a diferença. 
Tudo isso é Vik Muniz e se perderem a exposição dele no CCB é uma verdadeira pena. 
Eis uma pequeníssima amostra feita de bocadinhos de papel, açúcar, lixo e soldadinhos de plástico. Só isso já diz muita coisa.






sexta-feira, 7 de outubro de 2011

seu olhar

Deu por si a ouvir vezes sem conta Seu olhar de Seu Jorge. Música sexy, essa. O fim de semana começou a entrar, devagarinho, cheio de jeito quente e bom. Ela sorriu, relaxou e deixou-se ir.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

um pouco mais acima



Desligou o telefone e um travo amargo emergiu. Sentiu-se parva, muito parva, uma perfeita tonta. Os sinais tinham lá estado, cada vez mais patentes, em cada ocasião mais presentes, ela tinha-os visto e não quisera saber. Desta vez, tinha ligado com saudades, o motivo era um sonho com a amiga sempre ocupada, como se fosse preciso um sonho para contactar quem se gosta. A amiga respondera em jeito blasée, enchera a linha telefónica com as suas mil ocupações, viagens e sucessos. Do lado de cá, a mulher foi ficando pequena, diminuída, estreita, minúscula, até se tornar insignificante nas palavras da outra. Desligou então o telefone e ficou triste. Deixou-se viver a mágoa, olhou-a de todos os lados, limpou-se dela e finalmente concluiu a mesma verdade que aprendia de cada vez que tinha desgostos de amizade: às vezes é preciso deslocar certas pessoas para uma prateleira mais acima, mais longe do coração. A simples constatação, ajudou. Respirou fundo e seguiu a sua vida sem mais amargura. E com menos uma ilusão.

(A ilustração maravilhosa é de Yusuke Yamada. Obrigada, querida A.R.)

terça-feira, 4 de outubro de 2011

quatro de outubro

'Só preciso de cinco minutos.'

A mulher fechou a porta do escritório, voltou a sentar-se na cadeira, estendeu as pernas sobre a secretária, fechou os olhos e procurou um momento daquele dia na memória. Quinze anos voltaram atrás. 

Close up de barriga enorme, seguido de plano mais aberto sobre pernas de mulher sobre um pouf. As pernas tremem em solavancos. Imagem gira sobre si própria. Mulher ri em gargalhadas que não se deixam ouvir. Imagem dissolve-se, anda mais rápido. Um Fiat Cinquecento desloca-se sem grande velocidade numa madrugada  que parece quente pela luminosidade das ruas. As imagens atropelam-se de novo. Numa enfermaria, mulher segura recém-nascido nos braços.

Abriu os olhos e sorriu. Era certo. Aquela criança tinha nascido depois de um ataque de riso. Talvez por isso fosse tão excepcional. Ou talvez o fosse pelo amor com que tinha sido concebida, pela gravidez serena, ou apenas... porque sim. 

'Empurrei-te com gargalhadas e tu devolves-me sorrisos todos os dias. Obrigada meu anjo de quinze anos.'


segunda-feira, 3 de outubro de 2011

domingos com a família



Pode jogar o Benfica com o Porto. O Presidente pode resolver dar outra entrevista ou o Estado resolver prender de novo alguém importante. O FMI pode tentar entalar mais alguém. Gravem tudo o resto, os telefones ficarão por obrigação no silêncio, porque a partir das 22.10h, aos domingos, a televisão é minha para ver Uma família muito moderna. Não prescindo desta série. Maravilhosamente bem escrita, já me arrancou gargalhadas e também uma que outra comoção no sofá. É humor inteligente com personagens construídos de forma magistral (hoorray for Cam & Gloria!),muito bem vindo quando o fim de semana acaba e uma nova semana está prestes a começar. Um verdadeiro bálsamo.