quarta-feira, 30 de novembro de 2011

viver duas vezes

A sala do Museu do Jardim-Escola João de Deus recebia os convidados que chegavam em grupos, abraçando as autoras, reencontrando velhos conhecidos. A mulher chegou sozinha, deu um beijo rápido à amiga, procurando não lhe ocupar muito tempo, 'estas são ocasiões de emoção difícil de gerir', pensou. Lá fora, entre cigarros, contavam-se as últimas novidades da vida de cada um, condensando em poucos minutos, meses e por vezes anos de alguma ausência de reencontros.
- Já começou!
Disse alguém. Apressaram-se lá para dentro.
Os discursos começaram. A mulher, no seu jeito de sempre, observava a sala, as expressões dos presentes, o nervosismo da filha da amiga pela exposição da mãe, a tranquilidade dos pais, os sorrisos de quem lhes queria bem.
Finalmente, a amiga falou. Era ela própria, sem máscaras ou escudos, entranhando finalmente o papel de autora na pele, reflectindo em cada palavra e gesto aquilo que era, e sobretudo o lugar onde chegara. A mulher comoveu-se. Era bonito ver as amigas crescer e amadurecer no sentido de se tornarem pessoas mais seguras, limpas por dentro, utilizadoras plenas da negação e da afirmação nas suas vidas. Nem todas as pessoas veriam essa oportunidade ou seriam capazes de trabalhar nesse sentido. Crescer, custa, mesmo na idade adulta. Mas é lindo. É aproveitar por duas vezes uma única vida.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

true love


They spent their time doing nothing... They let intimacy fuse them.
Jean Genet

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

lisboa, menos 10 no interior

A mulher adorava observar as pessoas no trânsito. Chamava-lhe uma forma de perder o stress. Olhou para o carro ao lado. Como num filme mudo, o casal gesticulava. O som era desnecessário, as expressões diziam tudo. No automóvel da mulher, a temperatura desceu a níveis impensáveis. As pessoas travam guerras todos os dias, pensou. Aquelas pessoas pela certa tinham-se apaixonado uma pela outra um dia mas agora, apesar de parecerem mudas pela interferência dos vidros, travavam uma batalha feita de maus olhares, esgares de face, gestos bruscos de mão. O ser humano é tão difícil, voltou a pensar ela, as relações são tão difíceis. Um dia amam-se; pouco tempo depois combatem-se, amarfanham-se, anulam-se, detestam-se. Como é possível que não o façam com maior violência com seres com os quais não têm nenhum envolvimento? 
A mulher desviou o olhar, esperou pelo sinal verde do semáforo e imaginou que era um golfinho nadando em águas profundas, maravilhosamente azuis.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

sem

Uma semana em cheio. Não tenho forças para mais nada. 
Bom fim de semana.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

blip

O dia estava a acabar. A medo, a mulher enviou a sinopse. Quando o e-mail seguiu, sentiu o alívio de uma missão própria, individual, cumprida. Durante alguns segundos, saboreou a sensação e depois, desligou, procurando não criar expectativas ou talvez até esperando o pior. Blip. O correio chegou menos de uma hora depois. Viu o nome do destinatário anterior, enervou-se com a rapidez da resposta. Quando a leu ficou mais comovida que contente, mais cheia de responsabilidade que de vaidade, mais grata que orgulhosa. Não era por ser o segundo nem por poder voltar a ver o seu nome numa capa, isso até lhe dava uma certa vergonha. Era por poder ter novamente a oportunidade de contar uma história a quem a quisesse ler. No fundo, era disso que gostava. Era isso que precisava. As histórias que a escolhiam podiam adormecer por uns tempos dentro dela mas não por demasiado tempo porque senão morriam. Aí, sim, ela ficava muito triste por não as ter sabido partilhar. 'Mãos à obra', pensou, '...agora tens de tomar a forma mais perfeita que eu te conseguir dar; só assim poderás fazer com que alguém tenha vontade de te conhecer, se envolva, te ame e te tornes inesquecível'. 
A viagem começara. 

terça-feira, 22 de novembro de 2011

homeless

Não posso pensar muito em África. 
Pensar em África abre sempre no meu coração uma espécie de dor pequenina que não é bem dor mas antes uma espécie de saudade que não se explica muito bem. Talvez sejam as histórias mil vezes repetidas do amor dos meus pais vividas em Angola com intensidade, talvez seja a delicadeza dos pormenores do meu pai ao contar as suas viagens por entre campos brancos de algodão, talvez seja por causa do cheiro da terra que reconheci nas minhas duas visitas e que ficou para sempre impregnado nos meus sentidos, ou por causa da força comovente da natureza, ou unicamente pela sensação única de ali me ter sentido parte de um todo compreendendo em simultâneo que, na verdade, não tenho importância nenhuma.
Não posso pensar muito em África.
Porque, se o faço, rapidamente me sinto homeless e sopra um vento forte que me impele a voltar para lá, para um berço que trago cá dentro, para o berço que é de todos e que infelizmente tão pouco reconhecemos.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

o anjo do dia

Três chaves entraram na fechadura, uma de cada vez. As mãos dos respectivos donos rodavam-nas com mais ou menos jeito, mais ou menos agressividade, mais ou menos paciência. As duas mulheres e o homem decidiram beber um café na pastelaria da frente. Colocaram diversas hipóteses, entre elas a dos bombeiros que ficou logo fora de questão, a polícia viria a seguir, que escandaleira no Principe, riram em conjunto. Fizeram-se telefonemas, mil e uma histórias de terror ou de sexo circularam nas cabeças de todos sobre a razão de uma porta absolutamente inviolável, até que uma das mulheres resolveu pedir ajuda ao Senhor Leal, o dono da pastelaria. Prontamente, o senhor tirou da cartola outro senhor, o das obras lá ao lado, que veio com ar profissional mas desesperançado. Subiram todos a escada pela enésima vez, o senhor (das obras) afirmando a sua falta de fé, a mulher da ideia alentando-o a ser o salvador do dia. Fosse como fosse, ele rodou a primeira chave, sem sucesso. Experimentou uma segunda. Voltou a experimentar a primeira, sacudiu a porta para trás e para diante. Por fim, deu um pequeno jeito à chave e a porta abriu-se. As mulheres bateram palmas como crianças contentes. O senhor explicou o acontecimento com uma razão lógica, retirou importância à ajuda, e desceu, meio orgulhoso, meio envergonhado com os semblantes de alívio e os agradecimentos de todos. A última frase que disse foi 'tenham uma boa semana'. As mulheres não disseram nada mas piscaram os olhos uma à outra: o anjo do dia tinha sido descoberto.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

terapia do asfalto


Gosto de andar a pé. Sempre gostei. Aquela coisa de sentir o chão debaixo dos meus pés agrada-me, empurra qualquer coisa cá dentro, faz-me pensar, meditar, não raramente tenho ideias, mesmo boas, encontro soluções pisando a terra, a pedra, o cimento ou o alcatrão. Além disso gosto do ar na cara, do sol na cara, da chuva na cara. Limpam-me, ligam-me e também me desligam. 
Uma amiga de nome bem original, por certo, disse-me um dia que optara em definitivo pela terapia do asfalto. Cheguei à mesma conclusão recentemente. Uma das metas é mesmo voltar a tornar-me dependente dela todos os dias. Não existe melhor droga que deixar a nossa própria energia ser estimulada, fluir e expandir-se. Chama-se a isso estar connosco. Nada é mais precioso. Nada nos dá maior liberdade.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

cidades de anjos

Sentada no sofá, saboreava um copo de champagne enquanto mudava os canais. O filme, aquele filme que já vira inúmeras vezes, fê-la abandonar o comando. Recostou-se e reviu, reviveu as frases, relembrou os diálogos. O marido apareceu, nem o deixou falar, apenas se encostou nele e no seu calor. O significado, aterrou, gigante, no coração: existem anjos nesta terra, passamos por eles todos os dias, dão-nos encontrões pedindo desculpa gentilmente, apanham as chaves que deixamos cair, servem café com sorrisos, abrem portas.
Quando o filme acabou, não conseguia proferir uma palavra. Mas sentia-se cheia. 


quarta-feira, 16 de novembro de 2011

terça-feira, 15 de novembro de 2011

todas as noites

Todas as noites, antes de se ir deitar, repete a frase. Olhando nos olhos dela, com um abraço apertado e um beijo fresco que voa dos lábios pequeninos:

Mãmã, gosto muito de ti.

E assim ela se perde, todas as noites, desconsiderando as pequenas moléstias do dia.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

dear winston

Por que é que para se ser realista tem de se ser pessimista hoje em dia? Porque é que 'ter a noção do estado das coisas' implica a visão negativa das coisas? Por que é que ter uma visão diferente, acreditar em novos caminhos, procurar alternativas, descobrir o lado positivo, é equivalente a rótulos de Inconsciência, desconhecimento, lirismo ou mesmo falta de inteligência? Não raras vezes sou ironizada por procurar uma visão optimista ou por não querer participar neste discurso que nos empurra a cabeça para debaixo de água diariamente. Talvez me achem inconsciente, lírica e, quem sabe, até seja vista como pouco inteligente. Graças a Deus os inconscientes da História da Humanidade dão-me o seu apoio. Seja onde for que estejam.

A pessimist sees the difficulty in every opportunity; an optimist sees the opportunity in every difficulty.
Winston Churchill
I am an optimist. It does not seem too much use being anything else.
Winston Churchill
Never, never, never give up. 
Winston Churchill

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

de carne e osso

A senhora estava sentada diante da nova médica. A mulher, filha mais nova, estava ao lado, ouvindo atentamente a história, na atitude protectora que sempre caracterizara a sua relação com a mãe. Foi acrescentando pormenores, segurando o casaco, fazendo festas nas mãos lindas dela. A médica pediu licença para um telefonema urgente. A senhora e a filha ouviram o relato triste da doença de um avô em vésperas de partir. Quando o telefonema terminou, a médica emocionou-se, pediu desculpas, chorou. A mulher comoveu-se também, pegou na mão daquela e disse

Os médicos também são pessoas.

A médica voltou a emocionar-se, agradeceu. 
Despediram-se as três com um abraço.
No corredor, a senhora tomou o seu papel de mãe, a filha ainda secava as lágrimas. Entreolharam-se e disseram o quanto era bom existirem médicos de carne e osso.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

reconciliada com sàndor

Ontem à noite, deitada na cama, peguei de novo no livro. À terceira página, a história deu uma reviravolta. Quando dei por mim era uma da manhã e não me apetecia largar as páginas. Vale a pena esperar. Onde quer que estejas, Sàndor, desculpa-me. Dou a mão á palmatória: afinal, vale a pena esperar. Desta vez, Daniel Pennac não teve razão.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

só mais um bocadinho

Estou a aborrecer-me de morte com o livro que estou a ler. Impecavelmente bem escrito, é certo, e ainda por cima de um autor cujos livros que li, anteriores a este, me fizeram correr às livrarias para os oferecer a amigos e família.
Diz Daniel Pennac no seu mini-livrinho maravilhoso Como um romance que um dos direitos do leitor é abandonar um livro a meio. Fiquei com um alívio imenso quando li este direito que nos assiste (bem como um outro que praticava muitas vezes com o sentimento de culpa a berrar por todos os poros chamado "ir espreitar o final"). É certo que temos esta possibilidade, mas confesso que o abandono de um livro é algo que continua a dar-me amargos de coração. Talvez seja porque escrevo e por saber como me sinto quando sei que posso não ser lida. Sofro do síndroma da pena do autor. E sofro ainda mais quando gosto do autor. Aí sinto-me mesmo uma traidora. E, na minha caixa de valores, não se trai quem se gosta. Pronto. Desisto. Acho que vou continuar a tentar. Só mais um bocadinho, até terminar o livro.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

chuva

Os miúdos vêm em silêncio no carro. Impotentes, como caracóis, automóveis e camiões rolam pelas estradas, motores surdos. Pessoas apressam o passo na rua a coberto de capuzes e chapéus de chuva, solas e tacões abafados pela água. Apenas as gotas se fazem ouvir. 
Há dias em que a chuva se impõe e não deixa espaço para mais nada. Mais vale aceitar.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

ser capaz

Trezentas gramas de farinha. Trinta de manteiga. Duas gemas de ovo. Cento e pico gramas de açúcar. 
O miúdo mais velho colocou os ingredientes na máquina, o mais pequeno carregou no botão. A máquina entrou no seu frenesim habitual. Quando parou, a massa estava pronta. A mulher amassou-a com o rolo, entre pequenos roubos dos dois filhos com o mais velho a alertar o pequeno sobre as dores de barriga. Ela pegou em dois copos e todos transformaram a massa em pequenas formas redondas. O adolescente pincelou-as com a clara dos ovos. Os dois rapazes encheram de farinha dois tabuleiros e a massa foi finalmente para o forno em forma de bolachas. 
Quando o segundo tabuleiro entrou, o miúdo mais novo olhou para as mãos enfarinhadas, riu com ar matreiro e pintou a cara, camisola e chão, de branco. Gargalhada geral.
Meia hora mais tarde, bolachas douradas saíam do forno. Enjoados de tanta massa fresca, nem as provaram. Ela sabia e não se importou, isso era o que menos interessava. O mais importante eram os momentos vividos atrás. Os instantes que fazem a diferença entre co-habitar numa casa e ser uma família. A mulher olhou para eles e para a cozinha suja, e agradeceu ser capaz.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

quando fores adulto

"Quando fores adulta, compreenderás". Esta frase perseguira-a de forma irritante durante a infância e a adolescência. Com a arrogância própria desses tempos achara todas as razões um exagero; afinal são os adultos quem não entende um caracol acerca do mundo e da vida. Agora, quase trinta anos depois, compreende. Compreende como a vida se torna uma coisa mais fina, mais frágil. Compreende o grau objectivo em que as preocupações se movem e dançam, sem permissão para desvios ou segundas alternativas, em muitos casos. Compreende a mortalidade do ser humano, muito mais próxima e possível, mesmo se de forma metafórica, espiritual ou brutalmente física. Compreende a sensibilidade das relações entre pais e filhos que exige o despir-se de si mesma, afrontar certezas, desdizer-se, repensar-se. 
A noite anterior fora a gota. Numa conversa com o miúdo mais velho dera por si com a frase a assomar na boca: "quando fores adulto...", calara-se a tempo. Mas olhara para ele e revira na expressão dele a sua, muitos anos atrás. Algumas coisas mantinham-se apesar das mudanças dos séculos. De alguma maneira, isso era um conforto.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

novo ciclo

As mãos estavam sujas. Cheirava a limpo. Ainda havia caixotes cheios agora arrumados num canto do novo espaço porque fazia falta mais uma estante. Com um cansaço que tinha um sabor doce, a mulher recostou-se na cadeira que a acompanhava há cinco anos e recebeu o prazer de ter duas janelas, o ruído da sala ao lado. Era estranho e simultaneamente bom, o ruído. Pessoas a trabalhar, a falar, a comentar um sem-fim de coisas com ela, fumar um cigarro acompanhada à janela, rir muito, escutar a música dos outros. Há precisamente cinco anos entrara num escritório em Santos, agora apercebia-se: o seu ciclo de silêncio e solidão que se iniciara naquele bairro, tão necessário na altura, acabara. Estes iam ser anos cheios, pensou.