quinta-feira, 31 de outubro de 2013

happyween

Uma hora depois, ainda sentados no carro, mãe e criança já tinham esgotado brincadeiras e conversa. Ao chegarem à porta do evento o miúdo viu um simulacro de fantasma, choramingou e disse que não queria entrar. A mãe recordou os seus velhos terrores das caras tapadas ou irreconhecíveis.
Passearam o resto da tarde no Chiado com um gelado nas mãos, fazendo de botões de almofada interruptores de transformação e dançando como robots no parque de estacionamento. O dia acabou com uma sessão de Despicable Me, uma história para adormecer e vários beijos sentidos. Coisas normais, sem disfarces ou tradições coladas a cuspo. Verdadeiro Happyween.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

livros, livros e mais livros

Os livros enchem uma casa. Não os de fingir, apenas lombadas ou capas vazias de miolo, mas os de verdade. Os livros vividos, dobrados, anotados, dedicados, fazem parte de uma vida; por vezes, de muitas. Os dos meus pais viajaram de barco para África, tornaram a Portugal muitos anos depois, perdendo-se alguns no caminho, outros trazendo o cheiro da terra nas folhas amarelecidas. Tenho o orgulho de poder dizer que nasci e cresci entre livros, o que significa crescer entre mil histórias, pensamentos, questões, assuntos que nos fazem viajar, aprender e também amadurecer. Uma das melhores memórias que guardo é não ter memória do meu primeiro livro. Grata, essa, significa que é remota, bem antiga, a sensação de não ter consciência de um acto que somente se tem quando repetido tantas vezes quantas as necessárias para deixar de ser uma acção e passar a ser um gesto natural.
Os livros, usados, felizes, enchem a casa dos meus pais e, hoje em dia, a minha. Por isso, confesso que não resisto à tentação quando conheço a casa de alguém novo. Os meus olhos procuram, viajam, observam. Acredito que contam histórias que não são apenas as dos seus autores, contam também o percurso de quem os tem. Prateleiras de livros são estantes de revelações dos donos da casa. Por isso, nesta bisbilhotice militante, sorrio ao ver velhos conhecidos. E, se vejo livros por todo o lado, até nos locais mais inusitados do espaço, fico feliz. É sinal de boas-vindas. É sinal de casa.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

som-do-sangue

Eu tinha vinte e um anos e acabava de entrar para a minha primeira agência, como copy trainee. Meio tímida, olhava para todos-os-que-sabiam com a sofreguidão pura de quem quer saber e acredita que com a força da curiosidade, da capacidade e da perseverança, um dia vai conseguir. Claro que não seria fácil mas seria uma questão de tempo. 
Até que chegou aquele dia. Apresentaram-no como o TV Producer e ele levou-me à Namouche, o estúdio de som mais venerado da altura, casa de trabalho de Guilherme Inês e Zé da Ponte. Eu ia assistir a um briefing para a produção de um jingle. O TV Producer falou, gesticulando com as mãos grandes e vi som nas suas palavras. Mais, vi como as palavras dele se transformavam em música, ali, ao vivo, em poucas horas. Sei que fiquei muda, nunca tinha ouvido ninguém explicar uma intenção musical daquela maneira, como se fizesse parte do sangue. 
Chamava-se Zé Cruz, era angolano, bebia, fumava e sabe Deus que mais o quê, e tinha sensibilidade e melodia nos poros porque vivia, vivia de forma intensa, sem medos, desbragada. Com ele aprendi a explicar o som que se quer e a sentir o som que se procura. Aprendi a conhecer o Som, a não ter medo do linguajar do som. Um dia, depois de ter feito um comentário em estúdio, fiquei meio envergonhada e perguntei-lhe se teria ouvido mal. O Zé fez-me uma festa no cabelo, sorriu e disse: "é isso mesmo miúda, não ouviste nada mal, se há coisa que tu não és, é surda." Corei.

Soube há poucas horas que o Zé se foi embora deste mundo e ainda me custa a acreditar. Resta-me o consolo de pensar que, talvez, a esta hora, pode estar a fazer ritmos numa qualquer mesa dos céus, fazendo da música a salvação de alguém.
Que pena nunca mais te ter visto, Zé.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

ride, sally, ride



Música do dia. Se não viram o filme (The Commitments), façam o favor. É de 1984 mas vale a pena. Tenham um bom fim de semana. 

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

pequenina

Quando uma criança me oferece um presente fico sem palavras. Pode ser um pedacinho de papel, um desenho ou metade de um rebuçado peganhento, fico sem palavras.
Os miúdos não oferecem por cortesia, por ser a data certa, porque dá jeito ou porque lhes interessa. Quando o fazem e sobretudo quando nos estendem objectos deles ou criados por eles, dão-nos um bocadinho de si.
Eu sei. Nunca me esqueci. E por isso fico pequenina.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

um dia como outro qualquer

A mulher desceu as ruas a caminho do rio. No passeio, observava, como sempre, mil olhos procurando acasos, cenas invulgares, gestos especiais ou bonitos na trivialidade de um dia como outro qualquer.
Um casal de estrangeiros apaixonados que sorri quando espera pelo completar da fotografia.
Uma mulher que atravessa a rua com uma cabeça de manequim nas mãos.
A loja de chocolates desconhecida.
A galeria de arte antiga com fotografias de absurdo na montra.
A escola de escrita num novo lugar.
Um pub deslocado de tempo, de britânicos.
E o vento, aquele vento, impaciente como ela era por vezes, que lhe provocava dores de cabeça pela inquietação, pela vontade de fazer mais, escrever mais. 
Eram demasiadas as histórias que espreitavam.
A mulher acelerou o passo.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

downton again



Acabei agora mesmo de ver o primeiro episódio da quarta temporada. Dizer o quê? Brilliant.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

wes, yes!



Coming soon - 2014. Yeyyyyyyy!

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

lua-cheia

Anoitecia. As flores espreguiçaram as pétalas e, sem ruído, envolveram o seu centro. Os insectos recolheram a pequenos buracos na terra. As árvores acolheram os pássaros nos seus ramos. O silêncio começou a instalar-se. Mas, no jacarandá da Avenida, o beija-flor não queria dormir. Seduzido pelo astro gigante e luminoso, não podia deixar de o observar. Era paixão antiga, aquela, embora apenas agora se desse conta.  A ave suspirou, fechou as pálpebras  e desejou ser uma estrela. E então, nesse preciso momento, sentiu uma chuva miudinha; o beija-flor abriu os olhos e reparou nas suas penas molhadas de dourado. Ergueu o olhar. A Lua chorava, na alegria do amor.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

dentro da razão

Deitada na cama, a mulher teve arrepios. Vários e seguidos. Ficou irritada: este não é o momento para uma coisa daquelas (nunca é para ela, aliás). Resolveu não ligar e afogou as sensações numa pastilha efervescente. Mais arrepios. E, de súbito, o corpo cedeu, desmaiando num sono profundo. Afinal também era isso. Também. Ou 'isso' era o princípio de tudo o resto, na verdade. O físico quase sempre tem mais razão do que a cabeça. 

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

sem título

Saudades. Saudades de usar as palavras, agora que aprendeu que são como notas musicais ou cada uma delas a junção de pequenos fragmentos de vibração. Saudades de as escrever criando ligações sensuais, irónicas, mordazes, misteriosas, construindo histórias, impressões de dia.
A mulher não consegue viver sem as palavras, sem as dizer, contar, escolher, repartir ou sacrificar. A relação da mulher com as palavras não tem palavras, quase sempre é curta quando descrita por palavras e tem um efeito dentro dela que equivale a muito pouca coisa passível de ser explicada. Quando uma palavra estala ou explode dentro de si sob a forma de uma imagem antes de ser palavra é quase quase como a forma como os cientistas explicam um deja vu. A mulher conhece a sensação e por isso gosta das palavras. 
Existe apenas uma palavra cuja ressonância a mulher não consegue traduzir. É uma das mais curtas da linguagem universal mas é o eco da beleza mais profunda da existência. Ao ver-se confrontada com ela, a mulher fica muda; aí sim, palavras não chegam. Nunca chegarão, aliás.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

good oldies II



Tenham um bom fim de semana.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

no mar, de novo

A mulher dormiu a noite toda numa espécie de mar escuro onde não cabiam sonhos. Pela primeira vez em algum tempo a fantasia não a enfeitiçara; ela abandonara-se ao sono procurando refazer estruturas, renovar outras, reciclar o que era verdade, deitar fora o que era mera ilusão ou mentira. Tinha que se fortalecer. A grande mudança esperava-a e era ela, só ela, a arquitecta, como alguém lhe dissera uma vez.
Antes de acordar completamente, a mulher olhou o mar escuro em baixo e percebeu que o fundo já estava mais longe. A ascensão começara. Faltava pouco para chegar à luz.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

sorte dos deuses

O que é que se chama a um filho de dezassete anos que nos aceita, ajuda, compreende e apoia em qualquer decisão de maior? Chama-se grande companheiro. E enorme dádiva dos céus.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

by the window

Cinco da manhã. Sem conseguir dormir, a mulher abriu a janela e cruzou os braços no parapeito. Sentiu a presença. Era Seth, como sempre do lado esquerdo.

Tinha a esperança que estivesses aqui, disse ela.

O anjo sorriu:
The word for today is 'dream'. Discuss.

Ela fez uma pausa e depois
Imaginar. Ter uma visão. Olhar para a frente. Aprender com o que se fez ou não fez. Ter a coragem de criar a mudança.

Seth afastou uma madeixa de cabelo da cara dela. Olhos brilhantes como espelhos de rio. O anjo arrepiou-se:
Do you really believe in what you're saying?

Sim e geralmente eu sei, eu sinto. É como se ao ouvir dream me sentisse de facto na plenitude da luz ou no nevoeiro cerrado que encerra um mistério. Adoro essa vibração na palavra. Não gosto de névoa, de nuvens que ensombrem o sol, respondeu.

O anjo viu nos olhos dela uma faísca que conhecia. E então, disse:
Are you ready?

A mulher endireitou-se:
Sabes o que é não ter a menor partícula de dúvida, sabes o que é ver a beleza absoluta a oferecer-se aos teus braços, sabes o que é acabar com a mentira e ter uma semente de verdade nas mãos? Sim, estou pronta. Agora podes partir.

Wait, voltou ele.

Ela deu-lhe um beijo e disse-lhe ao ouvido:
Eu sei que estarás sempre aí. Mesmo que não te volte a ver.

A janela fechou-se.
O anjo ficou triste. Pela primeira vez em mais de trezentos anos, sabia o que era a tristeza, a sensação da possível falta. 
Ao sentir-se mais humano compreendeu que tinha terminado a sua missão. Pairou por uns instantes e depois não resistiu: sem fazer qualquer espécie de ruído, usando os seus dedos hábeis e esguios, reabriu a janela e ordenou à matéria que assim permanecesse, mesmo que a mulher a tornasse a encerrar. Foi apenas um pouco mas o suficiente. 
Seth nunca iria prescindir de vigiar o sono e a respiração tranquila daquela que amava.

domingo, 6 de outubro de 2013

verde salgado

A mulher entrou sozinha na festa que acontece todos os anos. Meio nervosa, sem saber o que esperar. Sem que ela nada fizesse as pontes foram-se criando, os amigos recentes, a mãe do amigo do filho, o anfitrião, a mulher do jantar. Era inevitável pensar mas a mulher não queria iludir-se: as pontes estavam lá mas os fios eram muito ténues, ou pelo menos ela via-os assim pela ausência. Talvez se tivesse esquecido, não suportava a ideia mas talvez fosse isso mesmo, um texto chamado black. A mulher abandonou a festa muito tarde. Confusa, não conseguia regressar a casa de imediato; dirigiu-se ao rio, olhou as águas e pensou que talvez tivesse sonhado toda a beleza. Então, os olhos dela transformaram-se num mar de água salgada que se derramou para dentro do rio. As águas ficaram mais verdes.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

ao meu filho Tomás


'Só preciso de cinco minutos.'

A mulher fechou a porta do escritório, voltou a sentar-se na cadeira, estendeu as pernas sobre a secretária, fechou os olhos e procurou um momento daquele dia na memória. Dezasseis anos voltaram atrás. 

Close up de barriga enorme, seguido de plano mais aberto sobre pernas de mulher sobre um pouf. As pernas tremem em solavancos. Imagem gira sobre si própria. Mulher ri em gargalhadas que não se deixam ouvir. Imagem dissolve-se, anda mais rápido. Um Fiat Cinquecento desloca-se sem grande velocidade numa madrugada  que parece quente pela luminosidade das ruas. As imagens atropelam-se de novo. Numa enfermaria, mulher segura recém-nascido nos braços.

Abriu os olhos e sorriu. Era certo. Aquela criança tinha nascido depois de um ataque de riso. Talvez por isso fosse tão excepcional. Ou talvez o fosse pelo amor com que tinha sido concebida, pela gravidez serena, ou apenas... porque sim. 

'Empurrei-te com gargalhadas e tu devolves-me sorrisos todos os dias. Obrigada meu anjo de dezassete anos.'

(Repeti o texto de outros anos mas esta é a minha memória eterna do nascimento do meu filho Tomás, uma das minhas obras mais perfeitas. Hoje faz dezassete anos e já me ensinou o que é o Projecto Venus, obrigou-me a revisitar David Bowie e música disco, sabe muito mais que eu de muitas coisas e é o miúdo mais generoso do planeta.)

linhas, pontos

Ela alinhavava. Cortava. Voltava a alinhavar. Cortava de novo. Escolhia outra cor, regressava ao preto, a sua cor preferida na superfície branca. As junções voavam na sua cabeça mais rápido que nas mãos. A mulher suspirava e voltava de novo. Por vezes, ficava satisfeita, noutras, as mais raras, as mais intensas, sentia os pontos longe. Quando o motivo vinha de dentro era sempre mais difícil encontrar a combinação perfeita. O sentido, a expressão, perdiam-se, odiava ser repetitiva, banal: como se preparava uma ternura imensa para ser cosida com mestria? 
Depois de tantos, depois de demasiados, aquele dia chegou. Um fio, delicado e macio, enrolou-se nos seus dedos. A mulher observou a magia e suspendeu a respiração. O fio foi percorrendo a pele das mãos, espreitou para dentro das roupas, descobriu todos os poros e abraçou-lhe o coração. Surpreendida com a rareza de não ter de fazer mais nada, fechou os olhos e saboreou, jurando a si mesma que apenas faria isso mesmo. Saborear. A costureira das palavras sabia agora que não era preciso explicar mais nada.


(A foto, maravilhosa, é do José D'Almeida e da Maria Flores.)

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

balançar



Hoje preciso disto. Se segura no balanço, sim. Não esquente a cabeça, não. E, no meio de tudo, deixe-se levar pela percussão e relaxe menina, relaxa. Não há outra forma, hoje.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

fall


É Outubro. 
Nunca sei o que sinto nesta altura do ano, confesso. Entristece-me a partida do estio com os seus dias longos, a pele despida sem necessidade de capas, os perfumes libertos, a limpeza do mar. 
Contudo, o Outono chega e o abraço dos frutos quentes encanta-me. Chegam as castanhas nas suas mil e uma maneiras generosas, relembro e celebro o cozinhar de tantas compotas deliciosas no vagar sonolento das colheres de madeira, no odor a açúcar torrado, no deslizar de um dedo matreiro que rouba um pedaço.
Aproximam-se noites sossegadas em silêncios que se desenham no ritmo lento do crepitar da lenha, ou plenas de vozes e risos dos amigos que adoramos deixar entrar em casa e partilhar a nossa vida. É um facto: o Verão vive-se lá fora, o Outono, por dentro, deixando vir o frio devagarinho para que os corpos se ajustem a uma nova estação da vida. Talvez haja um sentido em tudo isto: quem não precisa de aconchego depois de demasiado tempo ao sol? 
Outono diz-se Fall, em Inglês. Escrever é uma espécie de Outono: uma forma de despedida, uma forma de renovação, deixar que as vísceras falem, se limpem e assim se cuidem, permitir que o coração caia, se despedace e reconstrua, dando mais espaço a momentos bonitos da vida, a tantos momentos absolutamente maravilhosos desta vida que vale a pena contar.