sábado, 24 de dezembro de 2011

até dia dois

De 23 de Dezembro a 2 de Janeiro é verdadeiro Natal para mim, com férias, muita família em redor, os miúdos e os verdadeiramente sábios partilhando bons momentos. Espero que todos vocês tenham pelo menos o mesmo. Um maravilhoso Natal.


quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

a capa


Estes dias eram sempre uma montanha russa para ela. Sempre o tinham sido. Lembrava-se da alegria difícil que lhe embargava a garganta em pequenina, com a visão das luzes, a perspectiva das viagens a Madrid, a reunião com familiares mais e menos queridos. Durante muito tempo mascarara totalmente a época com uma aura de felicidade: uma boa menina não chora e é forte, não precisa de ninguém, não dá preocupações aos adultos; mas os anos e o conhecimento de si mesma tinham-na levado a tomar consciência e a aceitar todas as emoções associadas. Boas e más emoções que sempre tinham convivido com dificuldade, talvez por ser tão fantasiosa ou procurar contos de fadas em qualquer bocadinho de luz. Hoje, continuava a amar Dezembro mas amava-o sabendo que nem tudo era brilho ou paz. Agora aceitava uma certa tristeza que espreitava sempre nestas alturas, engolia a angústia inexplicável que por vezes lhe apertava o peito, e agradecia, agradecia imensamente ainda ter a casa cheia com os mais velhos para ensinar maravilhas aos mais pequeninos. Autorizava-se a rir e a chorar, sem vergonhas ou complexos. Permitia-se maus humores momentâneos, gargalhadas demasiado sonoras, momentos de melancolia, espaços reservados apenas para si. Havia um restinho de exigência que ainda tinha de deitar fora. Talvez fosse um bom desejo para o ano novo, este de abandonar em definitivo a capa de super mulher. Ficava-lhe demasiado grande quando a vestira por primeira vez e tinha sido trabalho de muitos anos descolá-la da pele, ainda sobravam alguns bocadinhos. Talvez dois mil e doze fosse um bom ano para isso. A mulher suspirou e pediu ao oxigénio que a ajudasse. Tinha um bom desafio para os próximos doze meses.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

oração aos meus filhos



Tropecem; eu prometo que ajudarei a curar o que vier a seguir.
Brinquem; eu prometo que estarei sempre pronta.
Cresçam; eu prometo que vos darei espaço.
Sejam infinitamente curiosos porque a beleza da vida é quase exclusivamente feita disso; eu prometo que abrirei todas as janelas que estejam ao meu alcance.

E acima de tudo, construam em vocês mesmos os alicerces para serem pessoas inteiras.
Quanto a isso não posso fazer nada. A não ser prometer-vos que darei o meu melhor enquanto mãe. 

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

delícia de domingo

O meu aperitivo para esta semana foi esta delícia de filme. Coincidência ou não, vi-o ontem, perto da meia-noite. Passei a noite a sonhar com coisas boas, tele-transportando-me aos anos 20, também a minha época favorita. Isto sim, não foi coincidência.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

homo narrans


Por diversas vezes, já mencionei aqui o blog da jornalista Patrícia Fonseca, Blogkiosk, um dos melhores que conheço e que sigo com a mesma regularidade com que ela escreve.
Num dos seus mais recentes posts faz referência a um texto do escritor sueco Henning Mankel, publicado no The New York Times, intitulado The Art of Listening. Os adjectivos poderiam ser muitos mas parecem-me curtos quando comparados com as palavras que o autor compõe em reflexões maravilhosas. Depois desta leitura apenas me resta calar e ouvir. Ser capaz de ouvir muito. 

"The simplest way to explain what I’ve learned from my life in Africa is through a parable about why human beings have two ears but only one tongue. Why is this? Probably so that we have to listen twice as much as we speak."

"It struck me as I listened to those two men that a truer nomination for our species than Homo sapiens might be Homo narrans, the storytelling person. What differentiates us from animals is the fact that we can listen to other people’s dreams, fears, joys, sorrows, desires and defeats — and they in turn can listen to ours.
Many people make the mistake of confusing information with knowledge. They are not the same thing. Knowledge involves the interpretation of information. Knowledge involves listening."
Tenham um bom fim de semana. De preferência com um pouco mais de silêncio. E de ouvidos bem abertos.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

desejos

Fiz a minha lista de livros desejados e são pelo menos quinze. Anotei os filmes que gostaria de ver ou ter e são cerca de dez. Antigamente sairia de uma certa livraria no Chiado com dois sacos gigantes debaixo dos braços. Agora, não pode ser. Os media dir-me-iam que a isto se pode chamar a minha própria crise causada pela outra que parece ser quase universal. Eu prefiro não fazer-lhes caso e achar que a isto se chama mais controle e, com isso, degustar as coisas uma de cada vez, devagarinho, sem sofreguidão. Mesmo que seja uma ilusão, mesmo que nunca mais me tenha sobrado dinheiro em parte nenhuma, prefiro pensar assim. Não é falta de objectividade, é saber aproveitar a vida. Acho eu.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

alguma vez terei cura?

A música comove-me. Comove-me a um ponto sem controlo, diria. A comoção pode chegar a várias cores, mas desenvolve sempre um pequeno nó na garganta que invariavelmente me faz derramar lágrimas, mesmo se danço, mesmo se apenas as soltar por dentro. É a admiração por quem sabe criar algo tão profundo, por quem tem ouvidos suficientemente sensíveis como para servirem de veículo para algo superior que segreda frases musicais em forma de sons ou de palavras.
Os meus filhos sabem que choro sempre que cantam ou tocam música. O mais velho chega a ter vergonha, o mais pequeno ainda se ri. Mas é demasiado forte. São muitas obras perfeitas a juntarem-se numa só voz.
Um médico homeopata um dia explicou que essa é uma das características do meu tipo físico, esta forma violenta como a música me toca. Será? Alguma vez terei cura? Espero que não.


terça-feira, 13 de dezembro de 2011

in a ray



(acordei desta maneira, hoje. há dias assim.)

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

compromisso

O professor distribuiu flores e pequenos doces. Entoou um cântico de agradecimento e renovou os votos a todos. Por fim, disse


- Fazer meditação é o vosso compromisso para com a felicidade. E não é apenas um serviço a vós, é um serviço a todos os seres humanos. Guardem o vosso mantra no vosso coração, reservem-no apenas no vosso interior, ele é a vossa essência, aquela que um dia será clara, se assim o usarem.


A mulher soube que aquele fim de semana iria ser o princípio de muitas outras coisas.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

o bom silêncio

Hoje, amanhã e depois, volto a aprender a meditar.
Deixem-me guardar este bom silêncio até segunda.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

avós e netos

Cada vez que o bebé grita com alegria "Vó!" ela fica luminosa (ainda mais). Cada vez que o miúdo mais velho lhes dá um abraço, o sorriso deles inspira dias de vida. Cada vez que se levantam numa casa cheia com a azáfama de vida de uma família nova, o relógio do tempo avança mais uns segundos, mais uns minutos, mais algumas horas.
Avós e netos deviam viver na mesma cidade, ter contacto permanente. A vida enorme dos primeiros recheia a dos segundos, a força e a inocência dos mais novos empurra suavemente a luz dos avós. São os extremos da existência humana a tocarem-se de forma gentil, tão próximos em tantos aspectos físicos, tão enriquecedores naquilo que a alma de uns e de outros pode trocar.
É por isso que nunca vou querer separar-me fisicamente dos meus filhos. Quando o meu tempo chegar, quero ser avó a tempo inteiro.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

heroes


Três mulheres bonitas de morrer por dentro e por fora resolveram sair da sua zona de conforto, ter ainda mais trabalho por amor a uma causa (o que quer dizer na linguagem deste mundo-que-já-está-a-mudar, a salário zero), juntaram esforços e mais de uma centena de pessoas, puseram-nas a rir (ou a gargalhar que deveria ser o verbo certo) e trouxeram para Portugal um projecto internacional com o lema de que sejamos mais positivos. Chama-se Inside Out Lisboa e, no mínimo, antes de verem, elas merecem que coloquem o vosso Like na página já existente do facebook. O meu, já lá está.
PS: Se quiserem saber mais, não deixem de ver o filme Women are Heroes. Imperdível.


(Joanne, Xana e Isabel, desculpem esta pequena inconfidência mas não aguentei. É demasiado bonito para ficar no segredo por mais tempo.)

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

o saco

Era segunda-feira. 
Era a primeira segunda-feira de muitas segundas, terças, quartas, quintas, sextas, sábados e domingos em que acordava sentindo-se em paz. Nos minutos que lhe restavam antes do despertador tocar de novo, antes de ter de se levantar para erguer a vida à sua volta, reflectiu no motivo. A resposta surgiu naturalmente, sem demoras, sem esforços desnecessários. Aquela paz tinha um nome: assumir responsabilidades. Por momentos, num flashback meteórico, reviu o passado recente e reviu-se  nas múltiplas vezes em que roubara a sua paz e roubara a dos outros por não assumir o que era seu e entregar de bandeja ao outro o que realmente lhe pertencia. O que fizera a diferença era apenas isso. Ela dera A César o que era de César. E, ao fazê-lo, ficara apenas com a sua parte, nada mais lhe pesava nos ombros. Isso era bom, era perder lastro. 
O despertador tocou.
Restavam-lhe cinco minutos antes da casa acordar. Foram suficientes para mais um bocadinho consigo, para pensar em silêncio só mais um pouco. Pensar que quando somos miúdos queremos ser adultos, sem qualquer noção das responsabilidades; quando chegamos à idade adulta, brincamos aos adultos, na verdade nunca quisemos deixar de ser crianças, só que com isso magoamos meio mundo. Na infância, apontar o dedo e atribuir culpas é obra de um momento, no seguinte passa e continuamos amigos para sempre. Na maturidade, actos repetidos desses desgastam, quebram e muitas vezes matam.
Os cinco minutos tinham passado. Levantou-se serena e pegou no seu novo saco de responsabilidades com imenso prazer.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

receita da época

Tirar os objectos da cave. Retirar das caixas, limpar o pó, ficar ligeiramente triste com o que não tiver resistido ao ano de dois mil e onze. Separar as partes, atarrachar, ver crescer. Empurrar o miúdo mais velho para participar. Acompanhar tudo com o meu clássico da época Frank Sinatra's Duets. Colocar a estrela no topo dando a responsabilidade às mãos mais pequeninas. 
Depois, é só esperar pelo acender do brilho dos olhos do bebé. 
Amanhã faço a Árvore de Natal.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

viver duas vezes

A sala do Museu do Jardim-Escola João de Deus recebia os convidados que chegavam em grupos, abraçando as autoras, reencontrando velhos conhecidos. A mulher chegou sozinha, deu um beijo rápido à amiga, procurando não lhe ocupar muito tempo, 'estas são ocasiões de emoção difícil de gerir', pensou. Lá fora, entre cigarros, contavam-se as últimas novidades da vida de cada um, condensando em poucos minutos, meses e por vezes anos de alguma ausência de reencontros.
- Já começou!
Disse alguém. Apressaram-se lá para dentro.
Os discursos começaram. A mulher, no seu jeito de sempre, observava a sala, as expressões dos presentes, o nervosismo da filha da amiga pela exposição da mãe, a tranquilidade dos pais, os sorrisos de quem lhes queria bem.
Finalmente, a amiga falou. Era ela própria, sem máscaras ou escudos, entranhando finalmente o papel de autora na pele, reflectindo em cada palavra e gesto aquilo que era, e sobretudo o lugar onde chegara. A mulher comoveu-se. Era bonito ver as amigas crescer e amadurecer no sentido de se tornarem pessoas mais seguras, limpas por dentro, utilizadoras plenas da negação e da afirmação nas suas vidas. Nem todas as pessoas veriam essa oportunidade ou seriam capazes de trabalhar nesse sentido. Crescer, custa, mesmo na idade adulta. Mas é lindo. É aproveitar por duas vezes uma única vida.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

true love


They spent their time doing nothing... They let intimacy fuse them.
Jean Genet

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

lisboa, menos 10 no interior

A mulher adorava observar as pessoas no trânsito. Chamava-lhe uma forma de perder o stress. Olhou para o carro ao lado. Como num filme mudo, o casal gesticulava. O som era desnecessário, as expressões diziam tudo. No automóvel da mulher, a temperatura desceu a níveis impensáveis. As pessoas travam guerras todos os dias, pensou. Aquelas pessoas pela certa tinham-se apaixonado uma pela outra um dia mas agora, apesar de parecerem mudas pela interferência dos vidros, travavam uma batalha feita de maus olhares, esgares de face, gestos bruscos de mão. O ser humano é tão difícil, voltou a pensar ela, as relações são tão difíceis. Um dia amam-se; pouco tempo depois combatem-se, amarfanham-se, anulam-se, detestam-se. Como é possível que não o façam com maior violência com seres com os quais não têm nenhum envolvimento? 
A mulher desviou o olhar, esperou pelo sinal verde do semáforo e imaginou que era um golfinho nadando em águas profundas, maravilhosamente azuis.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

sem

Uma semana em cheio. Não tenho forças para mais nada. 
Bom fim de semana.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

blip

O dia estava a acabar. A medo, a mulher enviou a sinopse. Quando o e-mail seguiu, sentiu o alívio de uma missão própria, individual, cumprida. Durante alguns segundos, saboreou a sensação e depois, desligou, procurando não criar expectativas ou talvez até esperando o pior. Blip. O correio chegou menos de uma hora depois. Viu o nome do destinatário anterior, enervou-se com a rapidez da resposta. Quando a leu ficou mais comovida que contente, mais cheia de responsabilidade que de vaidade, mais grata que orgulhosa. Não era por ser o segundo nem por poder voltar a ver o seu nome numa capa, isso até lhe dava uma certa vergonha. Era por poder ter novamente a oportunidade de contar uma história a quem a quisesse ler. No fundo, era disso que gostava. Era isso que precisava. As histórias que a escolhiam podiam adormecer por uns tempos dentro dela mas não por demasiado tempo porque senão morriam. Aí, sim, ela ficava muito triste por não as ter sabido partilhar. 'Mãos à obra', pensou, '...agora tens de tomar a forma mais perfeita que eu te conseguir dar; só assim poderás fazer com que alguém tenha vontade de te conhecer, se envolva, te ame e te tornes inesquecível'. 
A viagem começara. 

terça-feira, 22 de novembro de 2011

homeless

Não posso pensar muito em África. 
Pensar em África abre sempre no meu coração uma espécie de dor pequenina que não é bem dor mas antes uma espécie de saudade que não se explica muito bem. Talvez sejam as histórias mil vezes repetidas do amor dos meus pais vividas em Angola com intensidade, talvez seja a delicadeza dos pormenores do meu pai ao contar as suas viagens por entre campos brancos de algodão, talvez seja por causa do cheiro da terra que reconheci nas minhas duas visitas e que ficou para sempre impregnado nos meus sentidos, ou por causa da força comovente da natureza, ou unicamente pela sensação única de ali me ter sentido parte de um todo compreendendo em simultâneo que, na verdade, não tenho importância nenhuma.
Não posso pensar muito em África.
Porque, se o faço, rapidamente me sinto homeless e sopra um vento forte que me impele a voltar para lá, para um berço que trago cá dentro, para o berço que é de todos e que infelizmente tão pouco reconhecemos.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

o anjo do dia

Três chaves entraram na fechadura, uma de cada vez. As mãos dos respectivos donos rodavam-nas com mais ou menos jeito, mais ou menos agressividade, mais ou menos paciência. As duas mulheres e o homem decidiram beber um café na pastelaria da frente. Colocaram diversas hipóteses, entre elas a dos bombeiros que ficou logo fora de questão, a polícia viria a seguir, que escandaleira no Principe, riram em conjunto. Fizeram-se telefonemas, mil e uma histórias de terror ou de sexo circularam nas cabeças de todos sobre a razão de uma porta absolutamente inviolável, até que uma das mulheres resolveu pedir ajuda ao Senhor Leal, o dono da pastelaria. Prontamente, o senhor tirou da cartola outro senhor, o das obras lá ao lado, que veio com ar profissional mas desesperançado. Subiram todos a escada pela enésima vez, o senhor (das obras) afirmando a sua falta de fé, a mulher da ideia alentando-o a ser o salvador do dia. Fosse como fosse, ele rodou a primeira chave, sem sucesso. Experimentou uma segunda. Voltou a experimentar a primeira, sacudiu a porta para trás e para diante. Por fim, deu um pequeno jeito à chave e a porta abriu-se. As mulheres bateram palmas como crianças contentes. O senhor explicou o acontecimento com uma razão lógica, retirou importância à ajuda, e desceu, meio orgulhoso, meio envergonhado com os semblantes de alívio e os agradecimentos de todos. A última frase que disse foi 'tenham uma boa semana'. As mulheres não disseram nada mas piscaram os olhos uma à outra: o anjo do dia tinha sido descoberto.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

terapia do asfalto


Gosto de andar a pé. Sempre gostei. Aquela coisa de sentir o chão debaixo dos meus pés agrada-me, empurra qualquer coisa cá dentro, faz-me pensar, meditar, não raramente tenho ideias, mesmo boas, encontro soluções pisando a terra, a pedra, o cimento ou o alcatrão. Além disso gosto do ar na cara, do sol na cara, da chuva na cara. Limpam-me, ligam-me e também me desligam. 
Uma amiga de nome bem original, por certo, disse-me um dia que optara em definitivo pela terapia do asfalto. Cheguei à mesma conclusão recentemente. Uma das metas é mesmo voltar a tornar-me dependente dela todos os dias. Não existe melhor droga que deixar a nossa própria energia ser estimulada, fluir e expandir-se. Chama-se a isso estar connosco. Nada é mais precioso. Nada nos dá maior liberdade.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

cidades de anjos

Sentada no sofá, saboreava um copo de champagne enquanto mudava os canais. O filme, aquele filme que já vira inúmeras vezes, fê-la abandonar o comando. Recostou-se e reviu, reviveu as frases, relembrou os diálogos. O marido apareceu, nem o deixou falar, apenas se encostou nele e no seu calor. O significado, aterrou, gigante, no coração: existem anjos nesta terra, passamos por eles todos os dias, dão-nos encontrões pedindo desculpa gentilmente, apanham as chaves que deixamos cair, servem café com sorrisos, abrem portas.
Quando o filme acabou, não conseguia proferir uma palavra. Mas sentia-se cheia. 


quarta-feira, 16 de novembro de 2011

terça-feira, 15 de novembro de 2011

todas as noites

Todas as noites, antes de se ir deitar, repete a frase. Olhando nos olhos dela, com um abraço apertado e um beijo fresco que voa dos lábios pequeninos:

Mãmã, gosto muito de ti.

E assim ela se perde, todas as noites, desconsiderando as pequenas moléstias do dia.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

dear winston

Por que é que para se ser realista tem de se ser pessimista hoje em dia? Porque é que 'ter a noção do estado das coisas' implica a visão negativa das coisas? Por que é que ter uma visão diferente, acreditar em novos caminhos, procurar alternativas, descobrir o lado positivo, é equivalente a rótulos de Inconsciência, desconhecimento, lirismo ou mesmo falta de inteligência? Não raras vezes sou ironizada por procurar uma visão optimista ou por não querer participar neste discurso que nos empurra a cabeça para debaixo de água diariamente. Talvez me achem inconsciente, lírica e, quem sabe, até seja vista como pouco inteligente. Graças a Deus os inconscientes da História da Humanidade dão-me o seu apoio. Seja onde for que estejam.

A pessimist sees the difficulty in every opportunity; an optimist sees the opportunity in every difficulty.
Winston Churchill
I am an optimist. It does not seem too much use being anything else.
Winston Churchill
Never, never, never give up. 
Winston Churchill

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

de carne e osso

A senhora estava sentada diante da nova médica. A mulher, filha mais nova, estava ao lado, ouvindo atentamente a história, na atitude protectora que sempre caracterizara a sua relação com a mãe. Foi acrescentando pormenores, segurando o casaco, fazendo festas nas mãos lindas dela. A médica pediu licença para um telefonema urgente. A senhora e a filha ouviram o relato triste da doença de um avô em vésperas de partir. Quando o telefonema terminou, a médica emocionou-se, pediu desculpas, chorou. A mulher comoveu-se também, pegou na mão daquela e disse

Os médicos também são pessoas.

A médica voltou a emocionar-se, agradeceu. 
Despediram-se as três com um abraço.
No corredor, a senhora tomou o seu papel de mãe, a filha ainda secava as lágrimas. Entreolharam-se e disseram o quanto era bom existirem médicos de carne e osso.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

reconciliada com sàndor

Ontem à noite, deitada na cama, peguei de novo no livro. À terceira página, a história deu uma reviravolta. Quando dei por mim era uma da manhã e não me apetecia largar as páginas. Vale a pena esperar. Onde quer que estejas, Sàndor, desculpa-me. Dou a mão á palmatória: afinal, vale a pena esperar. Desta vez, Daniel Pennac não teve razão.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

só mais um bocadinho

Estou a aborrecer-me de morte com o livro que estou a ler. Impecavelmente bem escrito, é certo, e ainda por cima de um autor cujos livros que li, anteriores a este, me fizeram correr às livrarias para os oferecer a amigos e família.
Diz Daniel Pennac no seu mini-livrinho maravilhoso Como um romance que um dos direitos do leitor é abandonar um livro a meio. Fiquei com um alívio imenso quando li este direito que nos assiste (bem como um outro que praticava muitas vezes com o sentimento de culpa a berrar por todos os poros chamado "ir espreitar o final"). É certo que temos esta possibilidade, mas confesso que o abandono de um livro é algo que continua a dar-me amargos de coração. Talvez seja porque escrevo e por saber como me sinto quando sei que posso não ser lida. Sofro do síndroma da pena do autor. E sofro ainda mais quando gosto do autor. Aí sinto-me mesmo uma traidora. E, na minha caixa de valores, não se trai quem se gosta. Pronto. Desisto. Acho que vou continuar a tentar. Só mais um bocadinho, até terminar o livro.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

chuva

Os miúdos vêm em silêncio no carro. Impotentes, como caracóis, automóveis e camiões rolam pelas estradas, motores surdos. Pessoas apressam o passo na rua a coberto de capuzes e chapéus de chuva, solas e tacões abafados pela água. Apenas as gotas se fazem ouvir. 
Há dias em que a chuva se impõe e não deixa espaço para mais nada. Mais vale aceitar.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

ser capaz

Trezentas gramas de farinha. Trinta de manteiga. Duas gemas de ovo. Cento e pico gramas de açúcar. 
O miúdo mais velho colocou os ingredientes na máquina, o mais pequeno carregou no botão. A máquina entrou no seu frenesim habitual. Quando parou, a massa estava pronta. A mulher amassou-a com o rolo, entre pequenos roubos dos dois filhos com o mais velho a alertar o pequeno sobre as dores de barriga. Ela pegou em dois copos e todos transformaram a massa em pequenas formas redondas. O adolescente pincelou-as com a clara dos ovos. Os dois rapazes encheram de farinha dois tabuleiros e a massa foi finalmente para o forno em forma de bolachas. 
Quando o segundo tabuleiro entrou, o miúdo mais novo olhou para as mãos enfarinhadas, riu com ar matreiro e pintou a cara, camisola e chão, de branco. Gargalhada geral.
Meia hora mais tarde, bolachas douradas saíam do forno. Enjoados de tanta massa fresca, nem as provaram. Ela sabia e não se importou, isso era o que menos interessava. O mais importante eram os momentos vividos atrás. Os instantes que fazem a diferença entre co-habitar numa casa e ser uma família. A mulher olhou para eles e para a cozinha suja, e agradeceu ser capaz.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

quando fores adulto

"Quando fores adulta, compreenderás". Esta frase perseguira-a de forma irritante durante a infância e a adolescência. Com a arrogância própria desses tempos achara todas as razões um exagero; afinal são os adultos quem não entende um caracol acerca do mundo e da vida. Agora, quase trinta anos depois, compreende. Compreende como a vida se torna uma coisa mais fina, mais frágil. Compreende o grau objectivo em que as preocupações se movem e dançam, sem permissão para desvios ou segundas alternativas, em muitos casos. Compreende a mortalidade do ser humano, muito mais próxima e possível, mesmo se de forma metafórica, espiritual ou brutalmente física. Compreende a sensibilidade das relações entre pais e filhos que exige o despir-se de si mesma, afrontar certezas, desdizer-se, repensar-se. 
A noite anterior fora a gota. Numa conversa com o miúdo mais velho dera por si com a frase a assomar na boca: "quando fores adulto...", calara-se a tempo. Mas olhara para ele e revira na expressão dele a sua, muitos anos atrás. Algumas coisas mantinham-se apesar das mudanças dos séculos. De alguma maneira, isso era um conforto.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

novo ciclo

As mãos estavam sujas. Cheirava a limpo. Ainda havia caixotes cheios agora arrumados num canto do novo espaço porque fazia falta mais uma estante. Com um cansaço que tinha um sabor doce, a mulher recostou-se na cadeira que a acompanhava há cinco anos e recebeu o prazer de ter duas janelas, o ruído da sala ao lado. Era estranho e simultaneamente bom, o ruído. Pessoas a trabalhar, a falar, a comentar um sem-fim de coisas com ela, fumar um cigarro acompanhada à janela, rir muito, escutar a música dos outros. Há precisamente cinco anos entrara num escritório em Santos, agora apercebia-se: o seu ciclo de silêncio e solidão que se iniciara naquele bairro, tão necessário na altura, acabara. Estes iam ser anos cheios, pensou.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

príncipe real

Pelas minhas duas novas janelas entra mais luz. 
Em frente tenho uma das pastelarias mais pequenas de Lisboa (os queques mais deliciosos da cidade, pãezinhos quentes todas as manhãs, arranjados com queijo ou fiambre e imenso carinho pela D.Alice), os Correios, o meu Banco. À direita, vejo a árvore imensa do jardim e, à esquerda, a rua recheada de tantas outras tentações a escorregar para o Chiado.
Mas a grande, a enorme, a imensa diferença é a luz. 
A luz física que entra por todas as frestas e poros deste edifício lindo e antigo. E a luz de queridos amigos com quem partilharei o espaço, muitas gargalhadas e, sabe Deus o que mais.
Voltei ao Príncipe. Eu sabia que, um dia, havia de regressar. Regressamos sempre aos lugares que amamos e que nos devolvem esse amor.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

bom fim de semana



(sing it!)

dar

Eu dou
Tu dás
Ele dá 
Nós damos
Vós dais
Todos recebemos


(Hoje acordei com isto na cabeça. Sera que já o escrevi? Será que o roubei a alguém? Pouco importa. O que importa é que fica aqui. E é dado.)

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

camaleão

Que personagem quero vestir hoje?
É bom achar que podemos ser muitas de uma só vez, que cá dentro moram mil mulheres, mais sensíveis nuns dias, mais corajosas noutros, heróicas por vezes, raparigas ou meninas noutras, profissionais seguras por horas, mulheres frágeis por momentos, delicadas e de lágrima rápida nos micro-segundos que se escondem na inspiração seguinte.
É bom poder ser isso tudo. Sobretudo sabendo que se pode ser isso tudo porque o que importa, o que segura, a coluna que é muito mais que coluna, o centro, aquilo que nos torna reconhecível entre mil e um disfarces de camaleão, está lá.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

esperança

Gostava. Gostava tanto de te ajudar. Gostava de ser mágica, de ter mais poder sobre o mundo, fazer aparecer a oportunidade que mereces, tudo aquilo a que tens direito, por seres o ser extraordinário que és, por teres a generosidade que tanto faz falta a este mundo, a generosidade gratuita que dá o que tem e o que não tem, sem pedir nada em troca. Gostava mesmo. Gostava tanto. E há dias como este, mais sombrios e chuvosos, em que fico irritada e triste por não conseguir. Será que os senhores lá de cima não vêem isto? Confesso: hoje estou zangada com eles. Por ti.

A mulher terminou a carta imaginária, dobrou-a no espaço até a transformar em algo minúsculo e transportável, e depois esperou que ela chegasse pelo menos no formato de uma certa forma de esperança.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

empréstimo


Filho é um ser que nos emprestaram para um curso intensivo de como amar alguém além de nós mesmos, de como mudar nossos piores defeitos para darmos os melhores exemplos e de aprendermos a ter coragem. Isto mesmo! Ser pai ou mãe é o maior ...acto de coragem que alguém pode ter, porque é expor-se a todo tipo de dor, principalmente da incerteza de estar agindo correctamente e do medo de perder algo tão amado. Perder? Como ? Não é nosso, recordam-se? Foi apenas um empréstimo.
José Saramago
(Obrigada Pat.)

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

alternativas

You want the blue pill or the red pill?


A mulher percebeu que, de vez em quando, pensava na frase, por vezes com angústia, outras vezes com distância. Hoje, a esta hora, decidiu que não desejava nenhuma das duas. Afinal, porque é que só podem existir as alternativas que alguém que não nós se propõe a definir?

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

para acabar a semana em beleza II


Politicians, like diapers, need to be changed frequently. 
Mark Twain
(and thanks again dear Sven for the oh-so-relevant quote)

para acabar a semana em beleza I




A psychologist said to me, there are only two important questions you have to ask yourself. What do you really feel? And, what do you really want? If you can answer those two, you probably can leave your neuroses behind you.
Harold Ramis
(thank you dearest Sven for this wonderful quote; obrigada Mig pelo grafitti lindo) 

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

a riqueza

Na televisão, os medos do mundo ameaçavam, procurando cumprir a tarefa diária de agitar o ser humano, deixá-lo sem acção, bloquear. Irritada, pegou no comando e tirou o som. Tudo ficava muito diferente sem as palavras, bastante ridículo até, poderia dobrar-se com vozes de um qualquer discurso, até de amor. Não contente com isso, a mulher desligou também a imagem.

Sentada no sofá, escutou o silêncio, o som de uma pausa merecida. Por momentos, reviu todos os instantes daquele dia passado a correr, sentiu-se plena. Era certo que alguma vez já fora mais rica em substâncias materiais, clara e abundantemente mais rica. Mas agora sabia como oferecer mais riqueza a si mesma por saber de forma exacta onde se encontrava o seu centro, a sua voz, e respeitá-la. Tinha-lhe custado muitos anos chegar ali; por ironia, e em contrapartida, custara muito pouco daquilo que compra as coisas materiais. Nesse momento, o filho mais velho desceu e deu-lhe um beijo de boa noite. Ela olhou para ele e agradeceu mais outra riqueza que apenas se compra com saúde e respeito e que nos devolve mais riqueza quando a ajudamos a rechear-se de amor por si mesma. A mulher deixou-se estar e saboreou. 

terça-feira, 18 de outubro de 2011

gente demasiado boa

Em Madrid, a noite estava quente e apetecível. Ela estava à porta do restaurante. Conversava com o dono que lhe dizia o quanto gostava de Portugal e o quanto pensava que tinha potencial enquanto país. Ela encolheu os ombros e referiu as últimas medidas anunciadas pelo Governo. Uma sombra de pena passou pelos olhos dele enquanto dizia:

- Conheço bem essas medidas. Os Portugueses... vocês são gente demasiado boa... se essas medidas fossem anunciadas aqui, haveria pelo menos dois levantamentos populares e o governo teria de recuar. 

Ela detestou a pena nos olhos dele embora estivesse de acordo com as palavras que a acompanhavam. No fundo, no fundo, era isso que mais a irritava. O acordo. Foi então que pensou 'Será que alguma vez teremos coragem de deixar de gostar de merecer a pena de alguém?'

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

obrigada



Para  as minhas queridas Ana, Lili, Leonor e Maria João. Elas sabem porquê.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

confortar o mundo

Teve vontade de bater no mundo: o miúdo tinha sido assaltado no caminho para casa, primeiro roubo a solo numa rua vazia. A voz ouvia-se sumida do lado de lá, entre o medo ainda recente e a pena da perda de alguns objectos queridos dos adolescentes destes tempos. Mas não tinham levado tudo: um casal de pessoas de idade compreendera a cena à distância e aproximara-se para tentar ajudar. Teve então vontade de se reconciliar com uma parte do mundo. Enviou os únicos mails realmente imprescindíveis, arrumou a secretária e seguiu veloz para casa para confortar o que restava do mundo daquele dia do seu filho mais velho.

quantas vezes celebrámos nos últimos tempos?

"A natureza tem a solução"
Satish Kumar tem 75 anos e viajou de comboio de Londres até Lisboa para dizer que temos de ir mais devagar para chegar mais longe. A semana passada, este professor no Schumacher College, no Sul de Inglaterra, e director da revista Ressurgence esteve na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, para falar do livro Small is Beautiful, de E. F. Shumacher. Na mala trouxe a inspiração da Natureza e das palavras de Mahatma Ghandi e Martin Luther King.

Acredita que a solução para a crise no mundo está no respeito pela Natureza, no amor e na confiança. Caminhou 13 mil quilómetros, sem dinheiro, numa das maiores peregrinações de sempre pela paz mundial.

- Quantas vezes já o chamaram naif ou irrealista?

- Muitas, muitas vezes. Políticos, presidentes de empresas, estudiosos, até jornalistas... (risos). Dizem-me que as minhas palavras são impossíveis e que sou demasiado inocente e idealista. Mas a minha resposta é: o que têm feito os realistas? O mundo tem sido governado por eles e hoje temos crise económica, crise ambiental, guerras no Afeganistão, Iraque e Líbia, pobreza. O nosso realismo não é sustentável. Pusemos um preço em tudo. A floresta tem preço, os rios, a terra, tudo se tornou uma mercadoria. Talvez tenha chegado a altura de os idealistas fazerem alguma coisa. Esta é a minha resposta. Se sou idealista, não faz mal. A sustentabilidade exige um bocadinho de idealismo, de inocência.

- Então qual a resposta de um idealista à crise actual?

- Esta não é uma crise económica, é uma crise do dinheiro. E o dinheiro é apenas uma ideia, um número no computador. Os realistas criaram este problema artificial e estão preocupados com a crise, voam pelo mundo, vão a Bruxelas, reúnemse com banqueiros. Mas a terra continua a produzir alimentos, as oliveiras a dar azeite, as vacas a dar leite e os seres humanos não perderam as suas capacidades. Eu diria, regressemos à Natureza. A Natureza tem a solução, dá-nos tudo o que precisamos, alimentos, roupas, casas, sapatos, amor, poesia, arte.

- Como se põe essa ideia nas mãos dos líderes políticos?

- Por exemplo, Portugal devia ter mais dos seus próprios alimentos, roupas, sapatos, mobília, tecnologia. A globalização da economia é um problema. Estamos a importar tantos produtos da China... Tudo isso se traduz em combustíveis fósseis para o transporte, com efeitos no clima. Além do mais, estamos a chegar a um pico do petróleo. Quando se esgotar o que faremos? A economia local deveria ser a verdadeira economia; a economia global seria como a fina cobertura de açúcar em cima de um bolo, com entre dez a 20% da economia.

- Mas em muitos casos é mais barato importar...

- Sim, mais barato em termos de dinheiro, mas não em termos de Ambiente porque não adicionamos todos os custos. Este é um desafio que lanço aos políticos, empresas, cientistas e jornalistas: o valor deve ser colocado no solo, nos animais, árvores e rios, nas pessoas, não no dinheiro. Se não o fizermos, dentro de cem anos teremos uma crise ainda maior. O dinheiro é apenas um bocado de papel ou de cartão, uma conta no banco. É uma medida da riqueza, como quando usamos uma fita métrica e dizemos que esta mesa tem dois metros de comprimento por um de largura. É da mesa que precisamos, mas para nós a fita métrica é mais importante. O dinheiro é útil, claro, mas é só isso.

- Parece uma ideia difícil de concretizar. Por onde começar?

- Mudando a forma de pensar. Podemos imprimir notas, criar dinheiro criando mais dívida. Mas se poluirmos os nossos rios e envenenarmos as nossas terras, não os podemos substituir. Devemos viver como peregrinos, não como turistas. O turista é egocêntrico, quer algo para ele próprio, bons hotéis, restaurantes e lojas. A sua atitude é a exigência, quer sempre mais e melhor. O hotel, o táxi ou o serviço não era bom o suficiente. O peregrino é humilde, deixa uma pegada leve na Terra, respeita a árvore e agradece-lhe pela sombra e frutos. A mente egocêntrica tem de mudar para respeitarmos a Natureza.

- Hoje conhecemos melhor as marcas dos automóveis do que os nomes das árvores...

- Exactamente. Por isso, antes de mais, precisamos trazer a Natureza para a cidade, promover uma literacia ecológica. Não conhecemos a Natureza porque a exilámos, temos medo dela. Não saímos de casa porque está demasiado frio, neve ou chuva. Precisamos de estar confortáveis, civilizados. Na verdade, somos demasiado civilizados... (risos). As pessoas das cidades, como Lisboa, precisam abrir o coração à vida selvagem, caminhar na Natureza. O fim-desemana devia ter três dias para que, pelo menos, um dia pudéssemos andar a pé no campo. Mas não de carro porque assim não se vê nada. Quando caminhamos vemos as flores, a erva, as borboletas, as abelhas. Vemos e experienciamos tudo, não é um conhecimento dos livros.

- Mas podemos estar na Natureza e não reconhecer a importância de uma borboleta ou de uma abelha.
- Não chega observar a Natureza como um objecto de estudo. Isso é uma separação muito dualista. Só valorizamos a Natureza se a experienciarmos, se nos tornarmos parte dela. A Natureza não está só lá fora, nas árvores, montanhas, rios e animais. Nós somos Natureza. E ela tem valor intrínseco. Falamos de direitos humanos, mas também precisamos de falar dos direitos da Natureza. Os rios têm o direito de se manterem limpos, as florestas têm o direito a permanecer de pé.

- Quando tinha quatro ou cinco anos, a sua mãe disse-lhe para começar a andar e aprender com a Natureza. Para nós será demasiado tarde?

- Tal como a minha mãe me ensinou a andar na Natureza, gostaria que o mesmo acontecesse na nossa sociedade. Devemos educar as nossas crianças no amor pela Natureza, aprendendo na Natureza e não sobre a Natureza, com livros e computadores. Gostaria de ver os pais a levar os filhos para a Natureza e a deixá-los subir às árvores, escalar montanhas e nadar nos rios. Para as crianças não é tarde de mais, estão prontas para isso. Talvez para os adultos seja tarde, até porque têm medo da Natureza. Mas até eles podem descobrir que passariam a estar mais inspirados, teriam mais poesia, música e arte. A nossa sociedade está a tornar-se demasiado banal e prosaica.

- Toda a sua vida caminhou. Qual foi a viagem mais importante?

- A mais importante caminhada, da Índia para a América [de 1962 a 1965], foi inspirada pelo filósofo britânico Bertrand Russell, que protestou contra as armas nucleares. Quando tinha 90 anos foi preso por isso. Uma manhã, tinha eu 25 anos, estava a beber café numa esplanada com um amigo e disse-lhe: "Aqui está um homem que, aos 90 anos, vai para a prisão pela paz no mundo. O que estamos, nós, jovens, a fazer aqui sentados a beber café?". Isso foi a inspiração. Eu e o meu amigo fomos aconselhados a partir sem dinheiro porque a paz vem da confiança e a raiz da guerra é o medo. Se queremos paz temos de ter confiança nas pessoas, na Natureza, no universo. Durante dois anos e meio caminhei 13 mil quilómetros sem qualquer dinheiro.

- E como o conseguiu?

- Fiquei em casa de pessoas que ia conhecendo. Quando não tinha dinheiro dizia que era a minha oportunidade para fazer jejum. Se não tinha um tecto, era a oportunidade para dormir sob as estrelas. Antes de partir, na Índia, disseram-me: "Vais a pé, sem dinheiro, podes não regressar". E respondi: "Se morrer enquanto caminhar pela paz isso será a melhor morte que poderei ter". Assim caminhei pelo Paquistão, Afeganistão, Irão, Azerbaijão, Arménia, Geórgia, Rússia, Bielorrússia, Polónia, Alemanha, Bélgica. Em França apanhei um barco, apoiado pelos habitantes de uma pequena localidade, e fui até Inglaterra, onde conheci Bertrand Russell. Ele ajudou com os bilhetes de barco para Nova Iorque. Daí caminhámos até Washington, onde conhecemos Martin Luther King. Foi uma demonstração de que podemos viver sem dinheiro e fazer a paz connosco, com as pessoas e com a Natureza. Neste momento, a Humanidade está em guerra com a Natureza, estamos a destruí-la. E seremos perdedores se vencermos. A menos que façamos a paz com a Natureza não poderá haver paz na Humanidade.

- O que mais o preocupa?

- A minha maior preocupação é que a Humanidade não acorde a tempo de resolver os desafios. Talvez estejamos demasiado obcecados com os nossos padrões de vida, com a dívida, o dinheiro. A sociedade industrial tem lutado pelo crescimento económico a todo o custo. Mas também tenho esperança na Humanidade, num despertar de consciências. Cada vez mais jovens me dizem que temos de cuidar da Terra e que o crescimento económico não é suficiente, precisamos de bemestar. Se as pessoas não estão bem, de que serve o crescimento económico? É um bom começo. Até porque há abundância na Natureza. Quantas azeitonas dá uma oliveira? De uma única semente, lançada à terra centenas de anos antes, obtemos milhões de azeitonas. Isso é a abundância e generosidade da Natureza.

- O alerta para a crise do Ambiente tem mais de meio século. E hoje o problema está longe do fim. É uma mensagem difícil?

- As grandes mudanças constroem-se lentamente. Quanto tempo demorou o apartheid a acabar? Nelson Mandela esteve preso 27 anos. Mas o apartheid acabou. O mesmo se passa com os direitos humanos. Quando estive com Martin Luther King, em 1964, os negros não tinham direito ao voto. Hoje temos um homem negro na Casa Branca. E quanto tempo demorou o muro de Berlim a cair? Muito tempo, uma luta longa. Não sabíamos quando o muro iria cair, quando o apartheid iria acabar. Não precisamos de saber. Estamos a construir um movimento ambiental e o momento vai chegar.

- De que precisamos para ser felizes?

- Aprender uma única palavra: celebração. Temos de celebrar a vida, a Natureza, a abundância humana. As pessoas não são felizes porque não têm tempo para celebrar. Estão sempre ocupadas, vivem demasiado depressa. Os maridos não têm tempo para as mulheres e as mulheres não têm tempo para os maridos. Os pais não têm tempo para os filhos. As pessoas não têm tempo para celebrar a Natureza. É preciso abrandar para chegar mais longe, apreciar o que temos em vez de o ignorar e querer mais. Temos muita roupa no armário, mas ignoramo-la e vamos comprar mais. O mundo tem o suficiente para as necessidades das pessoas, mas não para a sua ganância, disse Mahatma Ghandi. O universo é um grande presente para nós todos.



(Obrigada querida L. por este texto que obriga a pensar e a pôr-nos em causa.)

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

a pergunta

O miúdo mais velho voltou do jantar com o pai era perto das onze da noite. Ela acolheu-o à porta de casa e reparou no sorriso de ambos. Curiosa, deixou cair uma espécie de pergunta sobre o jantar. O filho respondeu lacónico, mantendo o sorriso: 'foi um jantar animado, sim'. Ela remeteu-se à ignorância em que sabia que iria ficar, gostou muito daquela cumplicidade assumida. Quando a relação entre pais homens e filhos rapazes é saudável, existem momentos de igual modo saudáveis e muito recomendáveis em que, verdadeiramente, menina não entra.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

venham mais cinco

A senhora, a quem ela chamava Audrey por dentro, tinha acabado a consulta. Agora podia obedecer aos beliscões da preocupação de todos os seis meses: telefonou-lhe. Do lado de lá, a voz soou segura, a médica achara-a muito bem, 'Mercedes nem parece que tens oitenta e um anos', dissera-lhe. A melhor notícia veio depois no tom desafiante com que acrescentou

Sabes, filha, em Novembro já faz cinco anos.

Soava vitoriosa a frase. Pudera. Cinco anos. Como o tempo passa depressa e suave, suave, devagarinho, nos faz esbater o horror de uns dias com a iminência de um fim que não se sabe quão perto está até que o motivo do medo toma forma, se retira e se mata. Contudo, a incerteza do até quando, persiste e dura, ano após ano. Por isso precisamos destas metas médicas, da medalha de ouro dos cinco anos. Aí respiramos de alívio, ainda que saibamos não serem garantia de muita coisa mas apenas quando se quer, quando se ama verdadeiramente a vida mais do que a vontade de descansar.

Ligeira, a sua Audrey despediu-se e desligou a chamada.
Imaginou-a no comboio a caminho da sua casa no sul, os eternos cigarros (que apenas ela fumava daquela forma) guardados na carteira, as mãos compridas e lindas desfolhando as páginas de um livro, em cada uma deixando para trás pedacinhos de medo, em cada linha agradecendo a um pulmão e meio que desde aquela época valiam por dois.

Venham mais cinco assim, pensou. 

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

e ficar com um sorriso a semana inteira

É possível tratar temas difíceis do nosso mundo de forma delicada e invulgar. 
É possível comover e fazer sorrir em simultâneo, também. 
É possível ser artista sem ser intelectualóide ou apenas inconsequente, e fazer a diferença. 
Tudo isso é Vik Muniz e se perderem a exposição dele no CCB é uma verdadeira pena. 
Eis uma pequeníssima amostra feita de bocadinhos de papel, açúcar, lixo e soldadinhos de plástico. Só isso já diz muita coisa.






sexta-feira, 7 de outubro de 2011

seu olhar

Deu por si a ouvir vezes sem conta Seu olhar de Seu Jorge. Música sexy, essa. O fim de semana começou a entrar, devagarinho, cheio de jeito quente e bom. Ela sorriu, relaxou e deixou-se ir.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

um pouco mais acima



Desligou o telefone e um travo amargo emergiu. Sentiu-se parva, muito parva, uma perfeita tonta. Os sinais tinham lá estado, cada vez mais patentes, em cada ocasião mais presentes, ela tinha-os visto e não quisera saber. Desta vez, tinha ligado com saudades, o motivo era um sonho com a amiga sempre ocupada, como se fosse preciso um sonho para contactar quem se gosta. A amiga respondera em jeito blasée, enchera a linha telefónica com as suas mil ocupações, viagens e sucessos. Do lado de cá, a mulher foi ficando pequena, diminuída, estreita, minúscula, até se tornar insignificante nas palavras da outra. Desligou então o telefone e ficou triste. Deixou-se viver a mágoa, olhou-a de todos os lados, limpou-se dela e finalmente concluiu a mesma verdade que aprendia de cada vez que tinha desgostos de amizade: às vezes é preciso deslocar certas pessoas para uma prateleira mais acima, mais longe do coração. A simples constatação, ajudou. Respirou fundo e seguiu a sua vida sem mais amargura. E com menos uma ilusão.

(A ilustração maravilhosa é de Yusuke Yamada. Obrigada, querida A.R.)

terça-feira, 4 de outubro de 2011

quatro de outubro

'Só preciso de cinco minutos.'

A mulher fechou a porta do escritório, voltou a sentar-se na cadeira, estendeu as pernas sobre a secretária, fechou os olhos e procurou um momento daquele dia na memória. Quinze anos voltaram atrás. 

Close up de barriga enorme, seguido de plano mais aberto sobre pernas de mulher sobre um pouf. As pernas tremem em solavancos. Imagem gira sobre si própria. Mulher ri em gargalhadas que não se deixam ouvir. Imagem dissolve-se, anda mais rápido. Um Fiat Cinquecento desloca-se sem grande velocidade numa madrugada  que parece quente pela luminosidade das ruas. As imagens atropelam-se de novo. Numa enfermaria, mulher segura recém-nascido nos braços.

Abriu os olhos e sorriu. Era certo. Aquela criança tinha nascido depois de um ataque de riso. Talvez por isso fosse tão excepcional. Ou talvez o fosse pelo amor com que tinha sido concebida, pela gravidez serena, ou apenas... porque sim. 

'Empurrei-te com gargalhadas e tu devolves-me sorrisos todos os dias. Obrigada meu anjo de quinze anos.'


segunda-feira, 3 de outubro de 2011

domingos com a família



Pode jogar o Benfica com o Porto. O Presidente pode resolver dar outra entrevista ou o Estado resolver prender de novo alguém importante. O FMI pode tentar entalar mais alguém. Gravem tudo o resto, os telefones ficarão por obrigação no silêncio, porque a partir das 22.10h, aos domingos, a televisão é minha para ver Uma família muito moderna. Não prescindo desta série. Maravilhosamente bem escrita, já me arrancou gargalhadas e também uma que outra comoção no sofá. É humor inteligente com personagens construídos de forma magistral (hoorray for Cam & Gloria!),muito bem vindo quando o fim de semana acaba e uma nova semana está prestes a começar. Um verdadeiro bálsamo.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

escrevo porque gosto que me leiam


Olho para o contador e constato: mais de 10.000 visitas ao meu blog. Não quer dizer nada, eu sei, existem outros que têm muitas mais, não é o número em si que me importa. É o simples facto de saber que existem pessoas que gostam de me ler. Não vou ser modesta, nem fingir o contrário: fiquei feliz. Eu escrevo porque gosto que me leiam, dizer outra coisa seria pura hipocrisia. Muito obrigada a todos. 

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

desculpa

Zanguei-me contigo hoje de manhã e não gosto. Até tinha razão, mas não gosto(a razão é tudo menos relevante para estas coisas do coração). Não gosto de te deixar assim, mesmo sabendo que te passa mais depressa que a mim, mesmo espreitando por entre as sebes e observando que brincas como se não fosse nada. O único consolo é saber que às vezes é preciso, que um dia me agradecerás estas pequenas frustrações que te preparam para o mundo que não é igual à nossa casa por dentro. Deixa-me então dizer muito baixinho para que não me ouças: desculpa este papel de polícia mau que tenho de vestir algumas vezes. Ele é a diferença entre ser mãe e amiga. Estas lides da paternidade são tramadas, sabes? À diferença de muitos outros aspectos da vida, aqui temos de escolher um dos papéis. Eu escolhi o de ser mãe para com os meus filhos. É duro, é mais solitário mas ensina, dá confiança, prepara. Bolas, o quanto por vezes gostava de ser apenas amiga. Fica para quando for avó, prometo, isso ninguém me vai tirar.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

o rapaz da terra do nunca

Naquele final de tarde, a mulher sentia-se particularmente cansada. Uma noite mal dormida, muitas viagens de carro, a sensação era de colchão sem ar. Ainda faltavam contudo três horas para o dia acabar. Sem fome, obrigou-se a comprar um lanche para se obrigar a repor alguma coisa. Na volta para o escritório, encontrou o Rapaz da Terra do Nunca. Ele fê-la deter-se para lhe agradecer as palavras que ela escrevia todos os dias. A mulher comoveu-se por dentro e não soube exprimir o que queria. Mas graças aos senhores dos céus, ele era e seria sempre um Rapaz; por isso, de mochila às costas, afastou-se, levantou os pés do chão, sorriu e percebeu.  

terça-feira, 27 de setembro de 2011

para fazermos já



O poder de Kristoff


Já sabia que Nicholas Kristof era um jornalista especial. Mas hoje fiquei ainda mais impressionada com o poder que o seu nome tem - e como esse poder está a ser usado para combater a fome na Somália.

Kristof, distinguido com o Pulitzer pela sua cobertura dos acontecimentos em Tiananmen, actualmente já quase só escreve opinião. A sua coluna no New York Times é uma das mais influentes do mundo talvez porque ele nunca deixou de fazer o trabalho árduo do repórter, que suja os sapatos, fala com os protagonistas das histórias, pesquisa, investiga e incomoda quem for necessário para conseguir apresentar aos leitores, em menos de 800 palavras, a versão mais aproximada da verdade dos factos.
Kristof tem escrito, nos últimos dias, textos pungentes a partir da fronteira do Quénia com a Somália:

WHAT’S most heartbreaking about starving children isn’t the patches of hair that fall out, the mottled skin and painful sores, the bones poking through taut skin. No, it’s the emptiness in their faces.
These children are conscious and their eyes follow you — but lethargically, devoid of expression, without tears or screams or even frowns. A starving child shuts off emotions, directing every calorie to keep vital organs functioning.

A fome alastra no território, o mundo continua a desviar o olhar.Nada de novo? Acontece que um nova-iorquino, ao ler esta coluna doTimes, decidiu estender a mão ao povo somali, partilhando um pouco do muito que tem.
Kristof anunciou a boa nova no twitter e no facebook:

«Um homem diz que igualará todos os donativos que os meus leitores fizerem para ajudar as vítimas de fome na Somália. E eu digo: vamos levá-lo à bancarrota!»

O homem chama-se Whitney Tilson e, em menos de 24 horas, já teve de desembolsar 200 mil dólares para cumprir a sua promessa. Ele mantém que irá dobrar todos os donativos particulares até 100 dólares. Por isso, se algum dos leitores do Blogkiosk quiser colaborar (!), basta escolher uma organização que tenha missões de ajuda às vítimas da fome na Somália (e pode socorrer-se desta lista doWashington Post, por exemplo), e enviar uma cópia do comprovativo desse donativo para a Leila, assistente do Sr. Tilson, usando o e-mail leilajt2@gmail.com.

Há dias em que, como vêem, o jornalismo tem efeitos práticos e imediatos. Eu adoro esses dias.

(Texto copiado do blog da Patrícia Fonseca, Blogkiosk, e da sua autoria. Eu já fiz o meu donativo. Se o leu, por favor perca a preguiça e faça o mesmo. Crianças com fome, de olhos vazios e sem exprimir as emoções não podem deixar de nos tocar; porque se esse é o caso então estamos claramente a deixar de ser humanos e não merecemos sequer pertencer à categoria dos animais.)

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

overdose

A mulher entrou no Museu cheia de alegria por poder estar apenas consigo e com o que decidira ver, durante uma hora. Com demasiado optimismo achou que conseguiria ver as duas exposições. Na primeira, foi-lhe vedada a entrada, já havia demasiada gente a querer ver a  obra de Vik Muniz: 'volte um pouco mais tarde ou comece por ver a exposição de Pedro Cabrita Reis', aconselhou com gentileza o segurança. Era a outra que queria ver. E foi. As salas sucediam-se, alternando instalações poderosas com fotografias e pinturas. Pouco a pouco, a mulher foi ficando sem energia. Era tudo demasiado denso, demasiado narcísico, demasiado escuro nas profundezas. Saiu esgotada apenas com uma árvore e dois quadros gigantescos com azuis orgânicos a oferecerem-lhe um pouco de ar. Para ela a arte também era isto, sair da famosa zona de conforto, mexer. Tinha sido suficiente, quase uma overdose. Olhou para o relógio, consultou a dor nas costas e resolveu que o fotógrafo merecia ser apreciado de cabeça limpa. Saiu para o jardim, sentiu-se agredida pela quantidade de gente, deu um abraço e dois beijos aos seus e voltou sã e salva para casa. 
Meio quilo de morangos e outro meio de framboesas, quinhentas gramas de frutose e dois limões, depois, já estava de novo satisfeita, vertendo duas compotas lindas e saborosas em dois frascos reciclados, acompanhada de risos e narizes pintalgados de frutos silvestres.