sexta-feira, 29 de julho de 2011

metáforas da língua

Ela gostava de lançar perguntas de retórica para o ciberespaço. Regra geral correspondiam a questões que se fazia a si própria no momento; o éter da net servia apenas como uma espécie de confessionário e, reconhecia no íntimo, como pequenos testes malandros. Naquele dia, escreveu
e começa-se a arrumar por onde?
Alguns comentários sobre como arrumar objectos ou ofertas de ajuda mais ou menos jocosas, aterraram no wall. Ela abanou a cabeça pensando: "água". Segundos depois, um dos seus melhores amigos de sempre respondeu
pelo mais difícil.
A mulher sorriu de orgulho e agradeceu o conselho sábio. Cinco dias depois, ainda está a acabar de arrumar o mais difícil; só agora começa a perceber que não é uma questão de quantidade de prateleiras mas antes de capacidade de deitar fora, algo que ela sempre se achou tremendamente dotada para fazer. A nossa língua é cheia de metáforas.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

a barata

O homem, magro de tanta secura por dentro, foi cascando na vida. Os contornos das suas mil e uma infelicidades foram contados e repetidos, descritos de forma minuciosa e por vezes agressiva. As mãos, eram gentis no desfiar dos cigarros, um após o outro, como se até a sua própria destruição fosse minuciosamente preparada e seguida com rigôr. O homem gozava no mar das suas múltiplas desgraças. Nada se salvava, nem a própria vida. Uma sombra muito escura pairava de tempos a tempos sobre a mesa. Contudo, não permanecia ali por muito tempo, talvez fruto dos presentes que ficavam em silêncio de cada vez que ele os aproximava de mais um azar, mas que, rapidamente retomavam os risos e sorrisos pelo sentido de humor de uns ou pela generosidade de outros. A dado momento, uma barata voadora entrou pela janela e voou, tonta, entre dois dos convidados. A mulher, que era conhecida pela sua fobia, levantou-se de um salto e correu para a cozinha, provocando o estalar aliviado das gargalhadas. Um dos amigos ajudou, prontamente enviando o insecto para o reino dos céus. Alguém comentou que eram bichos limpos, mais limpos que se supunha e que subiam à superfície quando não aguentavam a pressão das profundezas. A mulher compreendeu que esta era a deixa para se ir embora. Já nem as baratas aguentavam tanta negritude. Olhou em volta e de repente achou o homem ridículo, profundamente ridículo, um poço sem fundo nem luz por opção muito própria e bem calculada. Lembrou-se de alguém que conhecera muitos anos antes, exactamente igual a ele, e de como esse alguém arrastara mulheres, amigos e um filho para o seu inferno de forma irreparável. Então, a mulher levantou-se e, com um sorriso, agarrou a sua corda e saiu.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

verdade e consequência

O oftalmologista tirou os óculos estranhos à mulher e disse que para estar tão bem por fora ela tinha de sofrer alguma coisinha por dentro. Com quarenta e seis anos, ela corou, como sempre corava com estas coisas, o inconsciente a berrar 'não olhem para mim se não eu morro'. Delicadamente sorriu e fez questão de fugir o mais depressa possível com a receita bem segura na mão. Duas horas depois estava na sua loja de óculos preferida. Não queria perder mais tempo a desperdiçar a sua visão.

terça-feira, 26 de julho de 2011

ser capaz

A mulher sentou-se e decidiu, em primeiro lugar, arrumar a casa. Em actos mecânicos, fez a lista do costume, foi assinalando as tarefas cumpridas, pela primeira vez com frieza, sem orgulhos bacocos por aquilo que sabia ser banal e demasiado fácil para si mesma; estava a arrumar a vida do presente. Depois, fez uma segunda lista, enumerando características que tinha coladas à pele sem serem sua pertença, segundos e terceiros Eus desnecessários, restos do passado dela e de muitas outras. Como se de uma serpente se tratasse, começou a despir essa segunda pele lentamente, riscando a lista, procurando deitar fora, ficar sem restos, não sem alguma angústia e muitas vezes com medo. 'O medo faz parte' disse-se, procurando espantar a razão desnecessária, os truques do jogador.
Finalmente, decidiu que não faria mais listas no que a si própria concernia. Aquilo que desejava para ela deveria ser escrito numa folha de papel com paixão, com vontade, acreditando, como um romance, desta feita verdadeiro. Ela sabia que só assim poderia começar a desbravar a vida do futuro. As melhores histórias da sua existência tinham sido escritas na sua imaginação. Por serem imaginadas com tanto cuidado tinham merecido a possibilidade de se tornarem reais. Agora ela aceitava que tantas vezes se esquecera disso e assim tantas vezes vivera menos.
Com um nó na garganta, misto de excitação e de medo, colocou uma folha branca diante de si e compreendeu o poder universal de apontar a direcção de uma nova história que agora lhe formigava nos dedos. Finalmente decidira que queria ser capaz.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

the privilege

o ano lectivo dos adultos

Estou de volta. Com uma centena de mails para ler e algumas preocupações profundas e sérias para matar. É mesmo assim, o fim do ano lectivo e das férias dos adultos.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

última semana de férias

Uma empregada nova, proveniente do Nepal, a quem ensinar os nossos ritmos, rotinas, manias e adaptar ao bebé, com todas as angústias que isso e supõe e que tento disfarçar. Um último trabalho para a Faculdade e um exame para preparar para a outra onde troco as voltas e faço o meu papel de professora. Decisões para tomar, papeladas para resolver e organizar, entre elas uma ida a Badajoz para tirar o Documento Nacional de Identidad do meu filho mais velho. Que é que querem? Não consigo fazer mais. Até segunda-feira da semana que vem. E até lá, se querem dar uma ajudinha, torçam por mim, para que consiga dar conta disto tudo.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

os temperos das férias - nostalgia de último dia

Não me apetece. Não me apetece abandonar os acordares preguiçosos, o cheiro a torradas de pão do Alentejo, os miúdos de caras ensonadas a encherem a mesa. Não me apetece deixar de ver o meu filho mais velho durante quinze dias, embora saiba que vá estar nas melhores mãos. Não me apetece voltar à rotina normal, à vida do costume. Talvez mais do que nunca, este ano, não me apetece. Agarro-me à ideia de que é este não apetecer que faz a delícia das férias e o renovar da vontade de todos os anos. Antes assim.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

os temperos das férias - pequenos acidentes

O bebé entrou no carro a toda a velocidade, dizendo
- Quer conduziiir....!
Atirou-se de cabeça para o banco da frente. Ao mesmo tempo, o pai abriu a porta do condutor, deixou a chave na bolsa. A porta ficou aberta.
Como se tudo se passasse em câmara lenta e simultaneamente num tempo sem tempo para reagir, a mãe assistiu ao mergulho do bebé no lugar do condutor dando lugar a um mergulho directo no chão logo abaixo da linha da porta do carro.
O miúdo caiu de lado, esfolando a bochecha, o nariz, a parte superior do lábio; um enorme galo cresceu na testa, também ele desenhando riscos na pele. Quinze minutos depois, a criança ria e brincava como se nada se tivesse passado.
Pequenos acidentes em época de férias. Nada mais comum para nos fazer espevitar e recordar como, em pequeninos, somos capazes de escapar por entre os dedos de qualquer adulto num sopro mais rápido que a da luz.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

os temperos das férias - destemperos

Gosto da casa cheia. Gosto de observar o meu sobrinho de dez anos procurando resolver a dissonância entre brincar com um primo de dois ou colocar-se nos bicos dos pés para tentar acompanhar os primos mais velhos. E acho muita graça ter dois adolescentes rapazes que se arrastam pela casa de férias, pavoneando uma pose que ainda não aguentam, esticando T-shirts compradas com orgulho sobre calções aos quadrados que depois abandonam no chão do quarto com a displicência blasé própria dos catorze anos. Não me importo que devorem a despensa e esvaziem o frigorífico como se amanhã fossem para um campo de concentração na Sibéria. Percebo os gestos egoístas, a desatenção; nesta fase o mundo compõe-se dos 20 centímetros à sua volta (com excepção do universo inteiro que dominam através da net e dos seus computadores; mas isso é outra história).
Já todos fomos assim, eu pelo menos não me esqueço. E por isso não me ofendo nem me afecto com estas coisas. Era só o que mais faltava. Afinal, os adultos somos nós. Infelizmente ainda existem muitos que ainda não cresceram desde a adolescência. Isso é que se pode considerar um destempero.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

os temperos das férias - os bons amigos

Uma boa amiga (daquelas mesmo boas) chegou na quinta-feira à noite. Na sexta, chegou uma segunda (daquelas mesmo boas).No sábado, o meu filho mais velho recebeu um grande amigo que para mim é outro filho, o meu irmão juntou-se à churrascada de fim do dia, trazendo o meu sobrinho e a minha cunhada.
Dias esplendorosos remataram um fim-de-semana perfeito onde sobraram gargalhadas para se colarem às paredes ou voarem pelo ar para entrarem, indiscretas, noutras casas, entre conversas de fim de tarde e confidências de adolescentes; não faltou sequer uma máscara de ginseng e ginko biloba que as três mulheres experimentámos na pele da face com um entusiasmo de miúdas (aquele que as mulheres que se gostam nunca perdem e aproveitam ao máximo quando têm o privilégio de estar juntas) para grande risota dos presentes, com direito a fotos e poses no jardim.
Ontem foram-se embora quase todos mas mesmo assim a casa não ficou vazia. Restou simplesmente a minha nostalgia e a saudade de momentos que se sabem irrepetíveis.
Ao longo de quatro dias não tive tempo para estar aqui; dei-me o direito de estar com todos os outros e, de tempos a tempos, fazer aquilo que mais gosto quanto tenho a casa cheia: distanciar-me, observar e reiterar o quanto gosto de toda esta gente.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

os temperos das férias - a sesta

A esta hora, o meu pequeno príncipe ainda dorme. No repouso da sesta tardia, segura os seu bonecos-de-sono com um dos braços, com o outro abraça os carrinhos que hoje pediu que lhe fizessem companhia. A pele brilha dos beijos do sol da manhã, os cabelos estão revoltos pelo vento incansável do Alentejo, nos pés restam ainda uns poucos grãos de areia aninhados.
A casa está em quase silêncio, apenas entrecortado pelo meu teclar e pelos comentários do meu marido e filho mais velho que, baixinho, respeitando o sono do mais novo, jogam um jogo de guerra na mesa da sala de jantar.
Cheiro os meus braços e o odor fresco do creme inunda-me as narinas. Podia dormir agora. Mas não me apetece. Gosto de sobrevoar a família de forma imaginária, acariciar todos com o meu olhar, sentindo-me distante e simultaneamente tão perto. São as sestas de cada ano, sentidas no Verão e apenas nas férias com esta plenitude.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

os temperos das férias - regressar à base

Calções e chinelo no pé. A toalha de praia. T-shirts em barda para alternar, incluindo aquela que já tem buracos de traça pequeninos mas de que se gosta tanto porque cheira a Verão. Os bikinis de todos os anos, de mil e um padrões que lembram momentos felizes e prontos a registar uns quantos mais. Umas quantas pulseiras e colares para ficar bonito, um chapéu.
É apenas esta a bagagem que levo nos meses mais quentes do ano. A minha sem-bagagem que significa por uns quantos dias deitar fora o supérfluo, rejeitar o anti-natural, despir as capas da cidade. Ninguém me obriga a mais. Dispenso arranjos complicados, pinturas na cara a não ser as que o sol brinda e pinta. Bastam-me os cabelos brilhantes e a pele bem cuidada. O Verão quer-se assim. Ou pelo menos eu, rendo-lhe homenagem desta forma. Da mesma maneira que desejo estar com a família, abrindo apenas a excepção a alguns amigos (os outros que me desculpem mas é mesmo assim). Quero gozar a paz da praia às melhores horas, assistir-nos a escorregar e derreter nos sofás ao final do dia, mesmo antes do jantar, o perfume dos banhos e dos cremes pairando nos quartos e corredores, a roupa a cheirar a limpo, os cabelos lavados, as caras felizes. Não quero saídas nocturnas, bares e discotecas, não quero gente que não me diz nada ou que me diga muito pouco. Anti-social? Talvez. Eu chamo-lhe regressar à base. Das coisas simples. As verdadeiramente boas da vida.

terça-feira, 5 de julho de 2011

os temperos das férias - o gelado e a sanduíche

Quando eu tinha a idade do meu filho mais velho, o Verão eram três meses de férias, oito horas diárias de praia, latas azuis de creme Nívea que as mães a custo espalhavam nas nossas caras e corpos, amigos, muitos amigos, um gelado ao final da tarde e... as melhores sanduíches do mundo a partir da hora do almoço. Não sei o que tinham, acredito mesmo que a minha mãe (com a casa sempre cheia a partir de Julho) não se daria ao trabalho de ser muito criativa nos recheios, mas a verdade é que eram as melhores sanduíches do mundo. Ou pelo menos sabiam como tal, da mesma forma que o gelado da tarde (Olá, com certeza) era o melhor fecho do dia. São memórias inesquecíveis que guardo e volto a guardar bem dobradinhas e com saquinhos anti-traça ao longo do Inverno, esperando que chegue o Verão. São momentos que desde que me conheço enquanto pessoa-com-vontade-de-ser-mãe quis passar aos meus filhos embora desconhecesse o como.
Ontem fiquei feliz e certa de estar a fazer um bom trabalho: na praia, os miúdos saborearam sanduíches e o resto do nosso piquenique como se estivessem a provar algo sublime. Revi-me neles, na cesta vazia ao regressar a casa, na sombra do guarda-sol com todos sentados em volta, mastigando, rindo e comentando. Por momentos voltei atrás... mas desta vez a cesta estava no meu colo, o papel de mãe era meu. Sorri por dentro; é este o ciclo da vida.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

os temperos das férias - a praia

O meu marido adora explorar. Ao pequeno almoço agarrou-se ao google maps e procurou a praia. Um pouco depois, sorria; tinha encontrado. Carregámos o carro com as toalhas, os brinquedos do bebé, as sanduíches, o fuet bem cortado, os ovos cozidos, o melão em pedacinhos numa cama de gelo para manter tudo bem fresco, e rumámos em direcção aos catorze quilómetros que nos faltavam. Desempenhando o meu papel de co-piloto, peguei no iPhone e fui dando indicações. A pouca distância daquilo que seria a praia desejada entrámos por um caminho de areia e contra todos os maus presságios, resolvemos avançar. Os miúdos brincavam no banco de trás mas na frente íamos silenciosos, não fosse algo atentar contra a atenção do condutor e a eventualidade de ficarmos enterrados na areia tornar-se realidade. Quando a pequena estrada acabou, o meu marido suspirou de alívio e parou por momentos o carro para recuperar do pequeno susto.
Mais à frente, a Praia do Malhão dava-nos as boas-vindas. Avançámos um pouco mais porque a praia perfeita do dia era ali mas mais adiante, queríamos uma praia pequenina, abrigada, longe do comum. Carregados, descemos pela ravina, os rapazes com destreza como se fossem habitantes das falésias, eu a medo. Já salva, na areia fofa e húmida, rezinguei. Mas depois olhei em volta e pedi desculpa: a praia valia todas as penas.
Ali permanecemos até meio da tarde, disfrutando do mar, da concha de rocha protectora em volta, das brincadeiras, dos passeios...
No regresso, suei por todos os poros a subida. Tenho vertigens daquelas que dão enjôos, que fazem suar as mãos e bater o coração como se fosse cavalo desembestado. Procurei não dizer nada mas a minha família conhece-me: o meu filho mais velho veio prontamente em ajuda, o meu marido disse 'anda menina' e, ao chegar ao cimo (por último, claro está) o bebé fez-me uma festa na cara com a sua mão pequenina e disse 'coitadinha da mãe, tem medo.'
Dia de praia lindo. Que mais se pode pedir? Apenas que volte, que volte sempre.

domingo, 3 de julho de 2011

os temperos das férias III - obrigada sinhor

Antes de ser feliz, de Patrícia Reis e agora Cidade Sitiada de Clarice Lispector. No período de lazer os dias sucedem-se vagarosamente como se o tempo ganhasse uma nova medida ou o simples facto de estar em paz permitisse uma maior vivência dos minutos. Apenas dois dias passaram e as páginas do segundo livro já me ocupam as noites, depois da areia, do sal que desaparece nos banhos quentes, dos jantares preparados com carinho, das conversas em que descubro mais da adolescência recente do meu filho mais velho e nas quais o bebé aprende novas e singulares palavras, apenas pela vontade de participar. Como ele muito bem diria, apetece-me dizer 'obrigada sinhor'.

sábado, 2 de julho de 2011

os temperos das férias II - bem vindos a porto côvo

Em Lisboa, o céu estava cinzento, a chuva caíra poucas horas antes. No desvío da estrada para Sines, algo mudou: o céu brindou-nos com meio-meio, meio de sombra, meio de luz e vinte e oito graus. Na estrada linda a caminho de Porto Côvo, as praias desertas fizeram crescer água na boca, as falésias de xisto fatiado protegendo o mar. Chegámos, desfizemos as malas, o bebé e o pai correram para a praia ansiando por um banho às sete da tarde. O miúdo mais velho e eu entrámos no carro e fizemos a estrada de volta a caminho de um supermercado. Ninguém queria perder pitada do dia seguinte. É isto as férias: aproveitar cada minuto, não desperdiçando nenhum mas sem stress. O que faz uma enorme diferença.