quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

as palavras


As palavras andavam a persegui-la. Palavras de ordem, palavras com significados concretos para a sua vida de fora e de dentro, arrumadas em frases que a abanavam pela pertinência. Como se a escolhessem de forma privilegiada ou como se ela tivesse agora a capacidade para reparar mais nelas, as palavras reuniam-se em sentidos que a obrigavam a reflectir todos os dias, sempre a uma velocidade estonteante, como se ela as tivesse de compreender e integrar em simultâneo em momentos milimétricos cujo efeito teria de perdurar, transformando-se em orientações de acção. Pareciam sair dos dicionários da existência, organizando-se numa espécie de rezas ou mantras que deveria tornar conscientes, conservar para si e instrumentalizar, tornar reais. 
Olhou para as frases do dia e acrescentou mais uma promessa à sua lista: nunca mas nunca mais voltaria a arranjar desculpas para não viver o que queria viver, não realizar o que desejava realizar, não ser a mulher que na essência era.

(obrigada Pat por esta imagem)

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

o paõzinho

A empregada do café olhou para a mulher e sorrindo, disse


"Eu guardei este pãozinho com sementes porque sabia que a menina precisaria do seu lanche, hoje."


A mulher ficou meio sem jeito e agradeceu. Adorava ser tratada de menina aos quarenta e sete anos bem como sentir o conforto de um gesto inesperado, sem necessidade de retorno. São estes os mimos da vida nos quais vale a pena reparar.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

o elogio do amor puro

Só um Mundo de Amor pode Durar a Vida InteiraHá coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la. Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível. A culpa é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo. 

O que quero é fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixonade verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria. 

Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios.Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas. 

Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há,estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. 
Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo? 

O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida,o nosso "dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. 

O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. 

O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado,viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a Vida inteira, o amor não. 
Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também. 
Miguel Esteves Cardoso in 'Jornal Expresso'






sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

porque sim


A Primavera já se atreve por aí.
Tenham um bom fim de semana.

dádiva

" Me acuerdo el susto que nos diste a todos antes de nacer, y en especial a mi, por ser el medico.Era fines de diciembre del 1964. S. habia nacido hacia pocos dias y todos vosotros vinisteis, tu aun dentro, a pasar las Navidades porque mis padres estaban en Puerto Rico y Fernando en Galicia.Tu madre solia tener unos desmayos impresionantes que se quedaba con una tension bajo minimos. Un dia le sucedio eso y no reaccionaba estando tumbada con las piernas en alto y la cabeza en bajo. Nada. Alguien decia, haz algo, pero que iba a hacer, tomar tension que no se cogia y contar los latidos cardiacos.Por fin poco a poco fue reaccionando.El asunto no era cualquier cosa pues cuando una situacion como esa se prolonga puede ocasionar lesiones fetales o fatales.Ya sabes algo mas que probablemente ignorabas. Es parte de tu biografia prenatal."

A mulher acabou de ler o texto e ficou gelada na cadeira. Afinal, por pouco tinha morrido antes de nascer não uma mas duas vezes. Pensou imediatamente na única pessoa que poderia ajudá-la a integrar e compreender este novo elemento na sua personalidade. Sentiu-se de certa maneira assustada. Depois respirou fundo e resolveu encarar tudo como uma dádiva. Ou mesmo duas. 

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

big mouths


A mulher viu a imagem e pensou como as pessoas falavam demais, como se introduziam na vida dos outros a mais, como opinavam sobre assuntos íntimos sem pejo ou um mínimo de decência, como se tivessem absoluta propriedade sobre o que se passava lá fora. No fundo, era uma tristeza, esse foco permanente no exterior, significava simplesmente o desviar das atenções do interior, o disfarçar de lacunas, autênticos buracos na existência. A mulher desviou a atenção e calou a sua voz de dentro. Ela venerava o silêncio.


(obrigada pela imagem, Carlota)

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

detox

Começa-se pelos sumos, continua-se nas saladas e na remoção do café. Depois vem a disciplina de uma alimentação a horas, saudável e completa. Assim se começa uma desintoxicação. Vai dar resultado? É claro que sim, não na perda dos quilos mas na perda da porcaria que nos intoxica, nos faz mal e nos debilita. É muito além do físico porque o físico é apenas embalagem. Mas é esta embalagem que nos segura, nos mantém e que, no final das contas, se ficar limpa, chega mais fundo, varrendo e aspirando o lixo daquele lugar recôndito onde a limpeza é realmente necessária e aconselhável. Nesse lugar profundo mora o nosso ser, seja o que for que ele seja ou que desejemos que seja. Quer-se limpo como um cristal para ser forte como o aço e flexível como o bambú. Pena que estas não são as coisas que nos ensinam desde pequeninos. No entanto, há sempre tempo para aprender se se quiser e afinal, como diz o meu pai, 47 anos não significam absolutamente nada.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

primeira vez

O miúdo mais novo estava doente de novo. O trabalho brotava que nem cogumelos e os dias pareciam ter horas a menos. Não se sentia serena nem alegre. Mas era véspera de feriado e véspera do seu dia de aniversário. Pela primeira vez em quarenta e sete anos a mulher não tinha bradado a quem a quisesse ouvir a comemoração do seu nascimento. Talvez fosse sinal de crescimento. Ou de uma mudança profunda. Muito francamente ela quis acreditar que sim. Então deixou-se voar, pairar sobre a sua vida e a de muitos outros, chegando à conclusão de que tinha inúmeras razões para trazer de volta a sua essência.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

um jantar

As duas mulheres riram, trocaram confidências, mimos e projectos. Na conversa, não havia idades nem quaisquer distâncias, apenas cumplicidades não ditas, palavras adivinhadas, conselhos, experiências partilhadas. O mais engraçado é que se conheciam havia muito pouco tempo; a sensação era de sempre. A amizade entre mulheres, quando é falsa, é terrível e esmagadora. Mas quando é verdadeira, ultrapassa calendários e minutos de relógio.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

privilégios da idade

A mulher decidira que este ano retiraria da sua lista interior todos aqueles que não sentia como verdadeiros no seu apreço por ela, deixando de fazer caso a compromissos ou a eventuais susceptibilidades. Assim, pensara, sobraria espaço para os que realmente sempre tinham lá estado e para novas amizades, sempre bem vindas. O seu quadragésimo-séptimo aniversário aproximava-se a passos largos; esse era o momento onde realmente poderia verificar se passaria à prática. Fez então a lista escrita daqueles que queria por perto e deu-se por satisfeita. Eram de facto os importantes, os não-invejosos, os companheiros de verdade. 'A idade dá-nos o privilégio da escolha real', pensou. 

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

pelo mais fácil

A mulher olhou em volta e viu tudo desarrumado. Tinha que começar por algum lado. Começou pelo trabalho, era claramente mais fácil.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

praise the Lord







Mais uma semana daquelas que só termina amanhã, depois de mais um exame na Faculdade de Psicologia. Estou atrasada, muito atrasada, espera-me uma longa noite. Irra.
Tenho cabeça e resistência para pouco mais.


Bom fim de semana!




(grafitti maravilhoso de DOLK, para quem estiver interessado)

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

play it again, miúdo

Quando eu tinha quinze anos um dos meus filmes favoritos chamava-se Casablanca. Poucos argumentos suplantavam aquela história de amor e guerra, traições e coragem. Poucos actores chegavam aos calcanhares de Bogart na sua elegância e, claro, raras eram as musicas que me impressionavam como a que Sam tocava ao piano. Hoje, ouço-a todos os dias nos ensaios do meu filho mais velho, ao saxofone. Ele nem sonha que eu o escuto, essas são invasões graves para um rapaz de quinze anos. Mas eu ouço e aprecio o duplo prazer de ouvir com orgulho este adolescente-a-caminho-de-ser-homem na descoberta em profundidade de uma melodia inesquecível com a nostalgia saborosa de regressar à mesma idade, trazendo de volta algumas sensações. 
Play it again, Tom. 
Play it allways.

 

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

exposição



UMA PEQUENA HUMANIDADE


Tive sempre, desde criança, a necessidade de aumentar o mundo com personalidades fictícias, sonhos meus rigorosamente construídos, visionados com clareza fotográfica, compreendidos por dentro das suas almas (...)

Esta tendência não passou com a infância, desenvolveu-se na adolescência, radicou-se com o crescimento dela, tornou-se finalmente a forma natural do meu espírito, Hoje já não tenho personalidade: quanto em mim haja de humano, eu o dividi entre os autores vários de cuja obra tenho sido o executor. Sou hoje o ponto de reunião de uma pequena humanidade só minha.

Médium, assim, de mim mesmo, todavia subsisto. Sou, porém, menos real que os outros, menos uno, menos pessoal, eminentemente influenciável por eles todos.

Fernando Pessoa
(Extraído de um inacabado prefácio às obras heterónimas)

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

mulher-caranguejo

A mulher sentia-se como um caranguejo pequenino sem querer ser um caranguejo pequenino. Um passo para a frente, o vento empurra, dois para trás. Um passo para a frente, um pau impede, dois para trás, voltar sempre ao mesmo sítio.
A mulher não gostava de se sentir caranguejo e muito menos pequenino. Uma decisão poderia ser a de partir uma das patas para não insistir em andar mas essa não queria, já a tinha visto antes numa outra mulher-caranguejo, tinha obrigação de aprender. Antes preferia partir as patas no esforço de avançar, mesmo que fosse coxa, mesmo que mais devagarinho. 
O braço esquerdo começou a doer e a mulher reparou como o pescoço estava novamente tenso. Começava a ser um clássico mas pelo menos assim regressava à realidade, sentindo-se menos caranguejo.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

the Help

O trailer deste filme engana. Pelo menos a mim, enganou-me. Julguei-o à pressa como uma comédia daquelas mais ou menos fáceis, 'oscarizável' com relativa eficiência e pensei que esperaria pela sua chegada ao vídeoclube para o ver. Provou de facto ser um candidato aos Óscares e as críticas não lhe pouparam elogios; nem essa foi razão para me deslocar a uma sala de cinema.
Na sexta-feira passada surgiu no videoclube e optámos por ele. the Help ou As Serviçais, na versão portuguesa (designação curta, na minha opinião) demonstrou-me como estava enganada: é um filme sobre o racismo e sobre a vida desgraçada de mulheres pretas ao serviço de brancos do Sul dos Estados Unidos nos anos sessenta (sim, ainda nos anos sessenta!) mas é ainda mais que isso. É também uma obra maravilhosa sobre o desrespeito pelas crianças ou a absoluta nulidade de ser mulher nessa época, naquelas zonas daquele país. Com uma imensa sensibilidade, é um filme sobre o amor pelos outros, o amor pela justiça e um credo contra todos os racismos de qualquer ordem. Claramente, a não perder.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

fim da semana

Que semana... preciso mesmo do fim de semana.
Tenham um bom que eu vou fazer por isso.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

AS COISAS que eu não sei escrever

AS COISAS LENTAS

Fumo demasiado depressa
o meu cigarro apagado.
Os cigarros fumam-se lentamente
ao espelho fixando um único dos nossos rostos.
Pois bem: na casa só nos cacos há reflexos. Os rostos suspendem-se
entre nós e nós, as letras das palavras. Os rostos aguardam-se,
observam-se, ao longe. E não há fumo que os evole..
Talvez por isso: nunca aprendi a acender um cigarro
por ser absolutamente desnecessário aprender a aprender a acender
um cigarro. Na casa onde tu fumavas
cada cigarro era uma letra. De cada vez que o filtro te tocava
os lábios eu perguntava: como te chamas? À superfície
do teu espelho, o teu vagar respondia-me
até ao esquecimento de nós.
Talvez por isso: tento acender um cigarro. Apago-o antes
que me chegue aos lábios.

Inês Fonseca Santos



(obrigada Patrícia!)

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

dever cumprido






Exame dado, exame feito, noção de ambos deveres cumpridos. Agora vinha mesmo a calhar uma cerveja geladinha para relaxar. Mais logo será. 
E certamente acompanhada de uma boa conversa. 
Há dias em que o resultado supera largamente o cansaço. 
Bons dias para que um novo mês descole e arranque como deve ser.