sexta-feira, 30 de agosto de 2013

dores de crescimento

O miúdo mais velho mede mais de um metro e oitenta e três. Acabou de chegar de Berlim, uma viagem que certamente foi incrível, graças ao pai e à Rita. É um rapaz-homem invulgarmente inteligente, invulgarmente maduro e um doce quando se passa a sua barreira de reserva. Fora tudo isso, conta-me muito poucas coisas. Acho que é normal nestas idades. E, se ele ler este texto, só espero que perceba que estas são as dores de crescimento. Uma mãe também as tem. Sou uma mãe-galinha, reconheço.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

listen



A música resolve muita coisa. Escuta a música, oferece música e deixa-te de merdas. 

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

brisa

Há uma brisa fresca no ar.
Para onde vai?
Não sei. Não quero saber.
Só importa que é brisa fresca.
E confiar.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

insónia

Quatro horas de sono inquieto depois de uma insónia de gigante com a profusão inerente das músicas que se repetem, entrecortadas por imagens reais ou imaginárias, tarefas por fazer, a vontade de esquecer tudo e dormir e o tic, tac, tic, tac permanente do relógio real, pousado num lugar confortável do quarto. A nossa cabeça é mesmo doida.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

relva fresca

A mulher riu. Riu até doer a pele da cara, riu até as lágrimas caírem, sem vergonha, arrastando tudo na passagem. Quando se ria assim, sabia a partida de crianças, ao cheiro da relva fresca recém-cortada, a gelado de limão com champagne, a dedos que tiram bocados de mousse de chocolate em segredo, ao riso dobrado de um bebé. Rir-se desta forma, pensou ela, era voltar de novo á sua essência, à sua verdade descontraída e virada para fora, aberta ao mundo. Numa segunda-feira e na primeira segunda-feira de trabalho depois de férias, era uma dádiva. Sorte era isto mesmo. A mulher não encontrou palavras suficientes para agradecer mas descansou; sabia que a sua gratidão não precisaria disso para ser compreendida.

domingo, 25 de agosto de 2013

(último) diário de bordo - excertos inesquecíveis III

"... and I would like to ask you, as best as I can, dear Sir, to have patience towards everything that is unresolved in your heart and try to love the questions themselves like locked rooms or like books that are written in a remote foreign language. Do not search now for answers that cannot be given to you because you would not be able to live them. And everything has to be lived. Live the questions now. Perhaps you will then gradually live your way, without noticing, into the answer some day. Perhaps indeed you have the capacity to educate and develop others as an especially happy and pure way of life; train yourself for this - but accept what comes in great trust, and as long as it comes from your will or from some innermost need, take it on yourself and hate nothing. Sex is difficult, yes. But it is a difficulty that is imposed on us; almost everything serious is difficult, and everything is serious. If you can only recognise that and manage to attain a relationship to sex that is entirely your own (not influenced by convention and custom) from your own inner disposition and nature, your experience and childhood and strength, then you will no longer have to fear losing yourself and becoming unworthy of your greatest possession.
Bodily pleasure is a sensual experience that is no different from pure looking or the pure sensation with which a beautiful fruit fills the tongue; it is great, infinite experience that is given to us, a knowledge of the world, the wealth and splendour of all knowledge."

Rainer Maria Rilke in Letters to a Young Poet

(Excerto retirado de uma das minhas 'cartas' preferidas, a carta de 16 de Julho de 1903. Uma boa maneira de fechar estes diários de férias, pareceu-me.)

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

diário de bordo - amanhã

Certos dias secam tudo. E secando a capacidade de proferir uma palavra como poderão não secar a possibilidade de escrever? Há sempre amanhã. E com ele, virá o mar. Hopefully.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

diário de bordo - papoila

Na praia soprava uma brisa, como todas, querendo ser suave e temperando o calor. O mar, em vagas pacíficas e largas, chamava. A mulher deixou-se estar, imaginando, a água tinha sempre nela um efeito poderoso. Uma onda, depois outra e mais outra. Deu por ela a mergulhar de corrida, sorrindo, como se tivesse menos trinta anos e a vida fosse mais ligeira. Esqueceu tudo e deixou-se voar por momentos cheios de palavras doces e gentis que denunciavam o despertar pelo que há muito ansiava. Dentro de água, uma papoila imaginária flutuou e quis beijá-la de forma delicada. A mulher fechou os olhos e ofereceu-lhe a sua pele macia.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

diário de bordo - o descanso de Rilke

Os livros são pessoas. Alguns deixam-me indiferente, outros enervam-me ao ponto de os deitar fora (literalmente, não sou capaz de oferecer um livro que não aprecie, seria como apresentar  alguém desprezível), e depois existem aqueles por quem me apaixono ao ponto de os guardar com mais ternura e cuidado do que os que empregaria noutro objecto, por muito valioso que fosse. Não é fácil dizer adeus a um livro destes. 
Além das histórias, dos personagens, das viagens, os livros tocam, mexem com sentimentos e lembranças, despertam dúvidas, fomentam a descoberta ou trazem sintonias maravilhosas que são autênticas comunhões de alma. Por isso são tão difíceis de abandonar. Eu acabei dois assim. E quando isto me acontece, sei que não posso de imediato entregar-me a um possível novo enamoramento, apenas há uma solução, voltar a uma antiga paixão para fazer um intervalo e ganhar fôlego. Assim será hoje. Retorno às Cartas a um jovem poeta que, espero, me farão enfrentar Rayuela de Cortázar, com tudo o que merece.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

diário de bordo - excertos inesquecíveis II

"A compensação de se envelhecer, pensou Peter Walsh ao sair de Regent's Park, de chapéu na mão, era simplesmente aquela: as paixões continuam tão fortes como sempre, mas obtemos - finalmente! - o poder de adicionar o sabor supremo à existência - o poder de apreendermos a experiência, de a fazermos rodar, lentamente, sob qualquer luz."

Mrs Dalloway, Virginia Woolf.

diário de bordo - excertos inesquecíveis

"E - continuou ela - , há outra coisa que acabará por descobrir por si próprio. Há no amor alguma coisa (não direi que seja um defeito do amor porque o defeito está em nós próprios), mas qualquer coisa que não compreendemos na sua natureza. Por exemplo, o amor que sente por Justine não é um amor diferente por um objecto diferente, mas o mesmo amor que sente por Melissa tentando realizar-se através de Justine. O amor é terrivelmente permanente e cada um de nós só tem direito á sua pequena porção. Pode aparecer sob uma infinidade de formas e prender-se a uma infinidade de pessoas. Mas é limitado em quantidade, e não pode esgotar-se e desaparecer antes de alcançar o seu verdadeiro objecto. O seu sentido oculta-se algures, nas mais profundas regiões da alma, onde acabará por se reconhecer como o amor de si, o terreno sobre o qual construímos uma espécie de saúde da alma. E isto não é egoísmo nem narcisismo. "

Clea em Justine, de Lawrence Durrell

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

diário de bordo - justine

Estou quase a acabar Justine, de Lawrence Durrell. Como sempre, há páginas marcadas, excertos sublinhados, mais ainda num livro que está comigo há mais de vinte anos e cuja primeira leitura me impressionou muito. Agora percebo melhor a razão, as razões. Talvez eu me encontre, assustada, em muitas das palavras que ali se juntam formando frases e significados. Prometi partilhar, não foi? Assim farei. E ao fazê-lo, estarei mais perto. Believe me.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

diário de bordo - memórias de algodão


Tinha vinte e um anos e a rede de comboios chamava-se Amtrak. Estava a meio de uma viagem a solo, pela costa Este dos Estados Unidos. O transporte avançava preguiçosamente pela Georgia. Com a testa encostada ao vidro, ela viu pequenas partículas brancas deslocando-se pelo ar. Pareciam flocos de neve confusos, num dia de Verão. A mulher recordou a sua infância. Olhou em redor: a carruagem estava quase vazia, à excepção de alguns passageiros, dormitando. Sem reflectir, seguiu o seu impulso de menina recém-despertada: encostou a língua ao vidro e imaginou o sabor  macio e fresco da neve nos seus lábios. Logo depois, adormeceu e sonhou, a inconsciência levando-a por entre os braços doces do algodão.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

diário de bordo - na primeira casa de todas

Quando éramos pequenos, a casa dos meus pais era suficiente. Hoje, é grande de mais. As memórias viajam pelos três andares, conversam com os livros, antigos e novos, que sempre tiveram espaço importante nas nossas vidas. Olhar para os quartos causa agora estranheza, como se estivessem adormecidos num sono profundo que se iniciou no momento da saída de cada um dos filhos. 
Difícil ver uma casa, outrora tão cheia, agora recheada de pequenos sussurros do passado. É que se nos Invernos éramos seis, nos Verões chegávamos a ser mais de vinte, quando vinham os abuelos, os tios e primas de Espanha, a irmã casada no Chile e os filhos, o irmão mais velho. Subíamos e descíamos os três lances de escada, dezenas de vezes por dia no tráfego intenso das famílias, em passos barulhentos durante o dia ou no nosso caso, as mais novas, pé ante pé a horas avançadas da noite ou madrugada, para não despertar a ira do abuelo Jesus, conservador de gema na sua alma de castelhano verdadero. No presente, vejo os meus pais calcorrearem a escadaria e custa-me. 
A esta altura não sei se gosto desta nossa casa. Acho que na minha alma que acredita na necessidade da mudança, preferiria vê-los num lugar mais pequeno, mais liberto de passados, num piso apenas que os acolhesse, os mantivesse confortáveis e cheios de luz. Mas isso sou eu e não tenho o mais pequeno direito de mudar a vida de pessoas tão inteiras que nos deram tanto. Por isso, acabo sempre por voltar ao mesmo estratagema que me ajuda a reduzir a dissonância: ao terceiro dia, procuro enxotar as recordações ou fingir que não as vejo e, ao olhar para as mais de duas dezenas de degraus, penso que o exercício lhes fará bem ao coração.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

diário de bordo - mar adentro

A mulher nadou, nadou, nadou, até quase deixar de ver a praia. O mar era, não raras vezes, a sua zona de escape, o seu modo de meditação, com tudo o que isso implicava, por vezes serenidade, outras tantas profundidade e escuro, receio, dúvida. Viver era isso mesmo, essa forma estranha de equilíbrio entre forças divergentes.
Hoje, o mar estava cristalino, verde-esmeralda.
A mulher susteve a respiração e mergulhou. Sentou-se no fundo e deixou-se estar no silêncio belo. Recordou-se de todas as vezes em que submergira mais fundo, muitos pés abaixo do nível da superfície e em especial daquela, nocturna. Em certa ocasião, mergulhara numa baía particular onde vivem micro-organismos que se defendem projectando uma luz de néon absolutamente azul. Envolta nesse halo incrível, ela ficara no fundo e sentira a vertigem do deixar-se ir, abandonando-se mar adentro...
A reserva de ar começou a esgotar-se. A mulher empurrou a areia com os pés e voltou à superfície. A saudade era tramada, era sempre tramada.

domingo, 4 de agosto de 2013

Diário de bordo - a música das palavras

Para ela, as férias começavam no momento de estar de pé, diante da sua biblioteca. De braços cruzados, de frente para os livros, tinha tempo, esperava. Bastava reservar um pouco, uns minutos apenas, e a maravilha começava. Pouco a pouco, alguns começavam a sobressaír, chamavam por ela, exigiam sem escolhidos. Não sabia porquê, mas sempre acontecia dessa maneira. Então, retirava os eleitos das estantes, quase pedindo desculpa aos demais. Esses seriam os seus companheiros nas férias, era inevitável. Contudo, era frequente acontecer outra coisa: a falta. Aquele era o momento da livraria e aí, o processo repetia-se. A mulher podia pedir títulos, clamar por autores, mas apenas aqueles que deveriam viajar com ela estariam disponíveis. Assim aconteceu este ano, de novo. Na loja, referiu cinco, somente um a pôde acompanhar. Na mala, além de Juliano, de uma sereia imaginada por um moçambicano e das cartas de um jovem poeta, a mulher leva consigo Mrs Delaware, uma música nova, desconhecida, para o seu coração.

sábado, 3 de agosto de 2013

férias grandes

Em pequeninos chamávamos-lhes férias grandes. Para mim, eram enormes, imensas no reencontro de Espanha, dos abuelos, de tios e primos queridos. Inesquecíveis nas festas de Navarra de onde guardo memória de tradições maravilhosas como o juego de pelota, o cantar delicado de grupos de homens de casa em casa, los gigantes y cabezudos, as danças populares nas praças lindas e bem cuidadas dos pueblos. Ali conheci primeiros amores platónicos, tomei contacto com a musicalidade estranha da língua basca, numa província onde a hospitalidade não tem a hipocrisia do turismo mas antes uma espécie de orgulho semelhante ao de Ocatarinetabelachichix,onde apenas serás autenticamente bem vindo se te aceitarem como fazendo parte.
Como uma brisa do sul que se deslocasse em viagem ao norte recolhendo pequenas amostras à passagem, prometo ser delicada no transporte cuidado dos pormenores para contar os odores, as sensações, as cores, as emoções, em bocadinhos, ou todos de uma vez. Prometo.


quinta-feira, 1 de agosto de 2013

violeta

Ela tinha um escritório que parecia uma casa pequenina. O espaço ficava num pátio adorável, um dos muitos lugares escondidos desta cidade que parece uma mulher misteriosa, cheia de curvas e recantos silenciosos. Ali, convivia com uma loja de flores, uma companhia que vendia lugares de sonho noutras paragens, designers e um atelier de reparação de móveis antigos cuja dona recuperava memórias de família espalhando fados em voz alta e despudorada. No primeiro Inverno, romântico como o Natal dos sonhos das crianças, sentiu-se transportada a outros lugares; olhando pelas janelas grandes imaginava-se facilmente em Nova Iorque, nos anos setenta de que gostava tanto mas que apenas vivera com poucos anos, embora envolvida pelas músicas dos irmãos mais velhos que lhe tinham criado o bichinho da curiosidade. Era bom estar ali. Aquele escritório tinha sido a sua primeira libertação das grandes empresas onde trabalhara e onde aprendera a detestar as guerras de personalidades; em definitivo, descobrira que a política, com a sua guerrilha e manipulações obscuras não eram nem o seu forte nem o seu ideal de vida. Ela era demasiado directa, demasiado transparente. No pátio, tinha o seu lugar, a solidão que prezava, a independência, a responsabilidade total. Ela gostava disso. Quando chegou o vigésimo primeiro dia de Fevereiro, ofereceu-se um presente de aniversário: um bonsai gigante a que chamou Golias. Era uma árvore generosa, de folhas verdes, carnudas e brilhantes, um super homem, poder-se-ia dizer. A mulher amou o Golias como amava os jacarandás da avenida que conduziam ao escritório mas nessa altura ainda não sabia quanto. Chegou a primeira Primavera e as árvores cantaram de verde. E, já bem próximo do Verão, começaram a colorir-se de violeta e do perfume mais doce do mundo. A avenida não era bonita, nela se misturavam os mais variados cheiros e, em certos dias, a calçada estava suja e peganhenta. Mas era inevitável olhar apenas para o lilás e agradecer. 
A vida mudou. A mulher está noutro lugar, com muitas árvores, lindo também, mas sem jacarandás e sem Golias. Hoje completam-se dois anos desde que deixou o escritório que parecia uma casa pequenina. E até ela que acredita nos ciclos, no fechar necessário de portas sem olhar para trás, não pode deixar de sentir essa palavra tão bonita chamada saudade.