sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

La Palisse

Amanhã acaba-se outro mês e mais uma Primavera se anuncia, descarada. Eu sei que é muito óbvio mas não consigo deixar de pensar:como o tempo passa depressa.

Histórias de um pão debaixo do braço

Quando eu resolvi pousar na barriga da minha mãe os meus pais não viviam nas melhores condições financeiras. Recém-chegados de África, ainda abalados com a perda dos horizontes largos e ensolarados, e procurando passar por cima do provincianismo atarracado do Algarve, eis que recebem a notícia da chegada de mais um filho. A minha mãe chorou. Não que eu não fosse uma boa nova mas trazia o receio de não ter como dar o melhor. A minha avó espanhola fechou a torneira de lágrimas, dizendo "Não te preocupes, Carmencita, um filho novo traz sempre um pão debaixo do braço".
Acho linda a expressão e ainda hoje quando ela a conta ou quando eu a descrevo, vejo-me bebé minúscula e nua, carregando uma baguette francesa e estaladiça debaixo de um dos meus braços diminutos.

Metáfora ou não, é verdade. Sei-o por experiência. O meu filho Tomás trouxe-me uma serenidade que não tinha e uma tolerância que desfez por terra todas as minhas certezas da altura, tornando-me uma pessoa mais aberta e condescendente. Fez-me perceber o quanto gostava de ensinar e de criar em conjunto com alguém bem mais pequenino mas muitas vezes mais sábio. Com ele, inventei linguagens novas, fiz foguetões usando rolos de papel higiénico, lambuzei guardanapos com ketchup, gordura e pizza para servir de convites a uma das melhores festas de anos que ele se recorda de ter.
O Vicente, não sei ainda que outras coisas me trará. Certamente, muitas, e algumas repetidas das minhas experiências felizes com o irmão. Mas o pão novo que já trouxe debaixo do seu braço, mesmo ainda antes de nascer, é a vontade que tenho de contar histórias à velocidade da luz, de convidar uma amiga muito querida para o fazer comigo e assim estarmos mais juntas de novo.

O melhor do mundo são de facto os nossos filhos. E os amigos verdadeiros também.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Esconjuro

Agora não quero. Aliás, não deixo. Tenho o direito de fazer o que me apetece. Não mexer uma palha, se for preciso. Ter ideias estapafúrdias à velocidade da luz, quando calha. Abrandar o ritmo e não me sentir obrigada a nada. Que me desculpem aqueles que não conseguem ver-me ao ritmo que desejariam ou com a frequência própria destes Estados de Graça. Não levem a mal mas só estarei quando me der na real gana. Abaixo as obrigações. Abanarei a cabeça em sinal de negação a qualquer imposição. Tenho o direito. Faz parte. É isso que desejo.
Ainda por cima, coisa inaudita, controlo conscientemente a culpa de não estar eternamente disponível, exigindo de mim própria o sentir na ponta de cada milímetro de pele o gozo de, por uma vez na vida ou pela primeira de muitas daqui para a frente, deixar que as coisas se façam sem mim, que alguém me mime, que alguém resolva, mesmo que não se antecipe como tantas vezes eu faço estupidamente, sabe-se lá para quê.
Há mudanças que valem a pena e nunca vêm tarde. 
Uma delas é sermos cada vez mais o nosso projecto para o completarmos de vez no dia em que formos realmente crescidos.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Duas, no máximo, três

Tenho necessidade. Preciso que apareças e sejas. Para que possa respirar melhor, andar depressa, correr como gosto e sentir-te para além de algo que empurra o meu ventre.
Tenho urgência. Sinto verdadeira urgência de te ver cá fora, olhar para ti, reconhecer no teu rosto traços meus, sinais do pai ou gestos de alguém.
Tenho impaciência. Impaciência real de te abraçar, sorrir para ti, ver-te crescer com a minha ajuda.
Tenho ansiedade. De não saber se me vais aparecer durante a noite, ao nascer de uma manhã limpa ou a meio da tarde para quebrar o ritmo.
A única coisa que não tenho é dúvida. Tenho a certeza que, muito antes do que diz a ciência, estarás cá fora, cumprindo uma tradição de crianças com avidez de viver neste mundo, cheias de gosto pela vida. Ou não fosses tu meu filho.
Faltam duas ou três semanas apenas. Não é verdade, Vicente?

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Amanhã

Amanhã faz 44 anos que nasci perto das 10 da manhã, a última de uma série de 4 filhos. Não há muito a dizer; há sobretudo muito a agradecer. Oportunidades não me têm faltado, felicidade também e desafios de maior ou menor dimensão, para aprender e levar um caminho por diante. Vida boa, esta. 

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

começar bem o dia

http://www.youtube.com/watch?v=VQ3d3KigPQM

As meias do meu pai

O meu pai é provavelmente o homem mais inteligente que eu conheço. Estou a falar de inteligência pura, não fabricada, daquelas mesmo mesmo avassaladoras. Não sei de mais ninguém que consiga absorver tanta informação ao mesmo tempo, que a consiga perceber nas suas mais variadas vertentes e que seja capaz de falar de assuntos complicados como se fossem brincadeira de crianças. Outra coisa é ser capaz de andar à velocidade dele; isso é muito mais difícil porque aí depende de nós, de quem o está a ouvir. Ufa, não é pêra doce, não. Ainda por cima porque sempre precisou de dormir pouco e por isso não é invulgar ver-nos a todos ao pequeno almoço com cara estremunhada (e algumas vezes aterrorizada), de boca aberta, a ouvi-lo desenrolar tudo aquilo que o seu cérebro devorou, integrou, mastigou e formou opinião (!) nas escassas horas que separaram o acordar dele do nosso.

Contudo, o meu pai é muito mais que um ser invulgarmente dotado do tão famoso e discutível QI. Se fosse só isso não seria tão original quanto é; provavelmente seria o verdadeiro chato e isso ele definitivamente não é. 
Deve ter sido um dos primeiros vegetariano-macrobióticos que nos anos 70 tinham a coragem de comer arroz integral ao almoço, numa casa cheia de filhos em idade de sentido crítico, com a assistência da super empregada de toda a vida, Emília, mulher-do-Norte-gastronómico. 
No Verão dos meus 14 anos descobriu a "frescura" das túnicas marroquinas e das sandálias, pelo que era frequente vê-lo por Portimão na sua longa vestimenta azul céu, bordada a branco, de pés de fora. 
Na altura, eu e os meus irmãos morríamos de vergonha com muitas destas excentricidades. Hoje, confesso que sorrio de orgulho, porque tenho a sorte de ter tido e continuar a ter um dos pais mais diferentes do mundo. É certo que também tinha um humor que podia variar com a direcção do vento, o que o tornava demasiado imprevisível. É verdade que nunca teve cabeça para o mais prosaico da vida e que sempre que nos levava à escola chegávamos atrasados porque para ele o tempo sempre foi uma coisa relativa. É um facto que fazia as combinações de roupa mais improváveis ou saia de casa com uma meia de cada cor (ou de chinelos). Nada disso é mais importante que a riqueza de matizes que formam a sua personalidade e que nos têm dado tanto ao longo das nossas vidas.

Desculpa lá, pai, se hoje faço uma coisa que detestas: dar-te os parabéns no dia  exacto em que nasceste. Eu sei que preferias que os tivesse dado ontem ou daqui a um mês; mas eu não tenho a liberdade que tu tens e por isso dá-me prazer fazer algumas coisas nas datas certas. É pouco criativo, eu sei, mas olha, apetece-me.

O meu pai, Alberto Quadros, faz hoje 82 anos.
Anda 7 quilómetros todas as manhãs e dia após dia esforça-se por dominar esta coisa moderna chamada computador e internet, para além de muitas outras coisas. É obra.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Obrigada São Pedro. Obrigada Deus. Obrigada Universo. Obrigada a Quem Quer Que Seja o Responsável. O Sol chegou e os braços começam a despir-se do mofo do Inverno. Sacudam-se as mantas, abram-se as janelas, arrume-se a negritude: já cheira a Primavera. Preciso que ela me inunde, me abafe e me sufoque num abraço apertado e quente, quente, quente. 

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

A relatividade das coisas

Por esta altura, noutros anos, a três escassos dias do meu aniversário, era menina para o andar a divulgar em cada milímetro de passeio. Sempre gostei muito de fazer anos e não tem sido o avançar dos mesmos que me tem tirado a ilusão. Muito pelo contrário: amigos e família continuam a rir-se, ano após ano, com os meus disparates nas vésperas, com as ideias estapafúrdias de temas para as celebrações, com o facto de, se for preciso, comunicar aos agentes da autoridade que cumpro calendário no dia 21.

Em 2009, porém, sinto-me diferente. Penso que sei porquê: há uma coisa pequenina e muito mais importante que desvia a minha atenção de mim.
Que linda é a relatividade das coisas.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

A amarga e doce realidade dos sonhos

Ando a sonhar muito.

Na semana passada, duas vezes com praias de cores extremas, mares cálidos, o sossego de estar sozinha, um bikini, a pele bronzeada e rigorosamente mais nada.

Hoje, um sonho terrível com a espera que não se deve esperar porque no mínimo é falta de respeito, a agressividade e humilhação gratuitas a que jamais devemos ser sujeitos. Despertei com o meu próprio choro e a sensação demasiado vívida que sempre tenho dos sonhos que faz com que leve tempo a libertar-me, a acreditar que não foi real.

Passa do meio-dia e ainda sinto amargo de boca.

Quero crer que, em ambos os casos, tenho que tirar mensagens do meu armário oculto, aprender com elas e fazer dessa aprendizagem a prática. Se não, para que serve tudo isto?

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Estavas ali e não era só o corpo

Passeámos à beira-rio como nunca tínhamos feito, eu, sem querer dar parte de fraca mas sentindo-me mais pesada a cada passo, tu com pouca vontade porque detestas andar em passeio, e o miúdo entusiasmado com a sua máquina fotográfica na mão.
Depois de seguirmos a regata chegámos ao Museu; engolindo o meu orgulho estúpido, pedi para voltarmos para trás.
Almoçámos na varanda envidraçada de um restaurante. O miúdo ocupou a tua atenção toda e falou a refeição inteira sobre coisas que só a ti e ele interessam. Confesso que me aborreci de morte mas é lindo ver saudades tuas em alguém que não é teu filho.

Às vezes só gostava que tivesses a noção do quanto nos fazes falta. 

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

O meu

Não sei onde estás nem o que foi feito de ti. Só sei que eu tinha dezassete anos e tu dezanove, acho eu. Eras o miúdo mais inteligente do grupo, cabelo preto, nariz grande, magro como um fio e costas de nadador.
Naquela noite de Verão, levaste-me a casa.
Estivemos das duas às quatro da manhã a conversar, de pé, encostados à parede da casa dos meus pais. Falámos sobre livros que mais nenhum dos nossos amigos tinha lido nem tinha vontade de ler; só nós. Também por isso nos maravilhámos tanto um com o outro; por essa razão os minutos passavam a correr e não tínhamos vontade de ir embora.
O beijo que não aguentava mais teve que ser dado e foi pretexto de despedida. Corei.

Na manhã seguinte, acordei com dor de barriga só de pensar que te ia encontrar na praia. E que a partir de agora éramos namorados.

Qual é o primeiro de todos os beijos?

Uma das minhas revistas preferidas, Time Out, pediu esta semana a quatro escritores para contarem o seu "primeiro beijo". Três deles fizeram o óbvio (desculpem lá qualquer coisinha mas é isto que eu acho), ou seja, contaram efectivamente os seus primeiros beijos da vida. A quarta, contou o seu primeiro com o seu marido, sem receio de ser romântica e sem precisar de rebuscar o palavreado para garantir o seu título de "escritora".
Tocou-me realmente o texto desta que conseguiu desviar-se do pedido. 
A razão é que, se eu tivesse que definir o meu primeiro beijo, a minha memória não viajaria imediatamente para o primeiro factual.
Aliás, já viajou e agora já não há remédio.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Migalhas de uma história verdadeira

Tiveram uma casa junto a um rio onde, à noite, espreitando por binóculos podiam ver-se elefantes, gazelas e gnus a tomar banho.
Tiveram uma vida repleta de dádivas humanas e de presentes da natureza farta e generosa de África.
Tiveram noites em que as estrelas pareciam ao alcance da mão no céu mais grande do mundo e a via láctea beijava o cruzeiro do sul enquanto escorpião fazia adeus com a cauda para olhos mais crédulos.
Tiveram horizontes mais largos e memórias suficientes para encher baús novos e imaginários no interior de cada um.

Explodiu o terrorismo e assustaram-se com a fragilidade dos filhos.
O verdadeiro golpe veio depois.
Um certo dia, um governador tentou dobrar os princípios dele. A dor de sequer pensar em se vender foi maior que uma catanada, superior à pertença que sentia daquela terra onde não tinha nascido mas que já era sua dona e senhora.
Rasgou a tentativa de suborno e atirou-a em jeito de estalada para o caixote do lixo.
Malas fizeram-se, objectos cheios de histórias foram sufocados em contentores esperando a volta à metrópole.

Diz a minha irmã mais velha que o meu pai nunca mais foi o mesmo depois disso, que perdeu a alegria e a espontaneidade com a volta. Acho que exagera: tenho a certeza que os netos recuperaram pelo menos parte da liberdade que ele sentia do lado de lá do oceano, mais a sul do planeta. Sei no entanto que não foi fácil. E que depois de onze anos de vistas largas, o Algarve com a pequenez e provincianismo das suas mentes da época, castrou uma mulher urbana e sofisticada e certamente calou o ar de um homem livre.

Por isso quando chego a este episódio deste conto verdadeiro, não me apetece relatar mais nada. 
Só agradecer-lhes o facto de ainda estarem connosco e diariamente acrescentarem mais um ponto a tanta riqueza.

Eu não nasci em Angola. 
O que escrevi aqui é apenas uma migalha de todo o brilho que sempre sai dos lábios de Tita e Alberto quando viramos crianças pequeninas e pedimos para desfiarem a sua história mais uma vez.

Essa, a versão integral, fica comigo, para contar devagarinho aos meus.

...the end

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Eles choram mudos


A pele dela, era branca como a neve do norte. A dele, era morena pelos fortes genes da Ásia e pela eterna adoração ao sol.

Em Angola, cada poro de Alberto concentrava mais de um quilómetro de estrada ou "picada" percorridos em jipe ou "dois cavalos". E dentro de cada centímetro de pele acumulavam-se centenas de partículas daquilo que visitava e tratava diariamente como médico da natureza: o algodão. Uma vez perguntei como era, os olhos dele brilharam, e explicou

"Ao colher o algodão, os teus dedos devem ter a suavidade de um pianista... têm que se juntar como se fossem uma pinça delicada, como se os quisesses unir para soltar um beijo no ar ou como a mão de uma criança quando começa a descobrir a arte de escrever. Se não souberes aproximar os dedos e com delicadeza puxar pela bola de algodão, ela roça as folhas secas e fica tudo sujo, cheio de pedacinhos..."

Para ele, pouco tempo bastou para que a terra do continente africano deixasse de ter mistérios, mesmo quando as inundações varriam os solos, as pragas de gafanhotos devoravam colheitas ou aquela virava mulher parideira depois de uma queimada a perder de vista. Preguiça nunca foi nome ou alcunha deste homem. Por isso, tinha a profissão certa, a profissão que o obrigava, sem obrigar, a calcorrear centenas de palmos de estrada, favorecendo um espírito errante e uma alma um tudo nada demasiado independente.

Alberto amou África de tal modo que nunca foi capaz de confessar.
Talvez por isso a única vez que o vi chorar foi aqui, e em silêncio, na pequenez destes escassos setecentos e pico quilómetros, ao assistir às imagens de uma Luanda recém-independente, caótica, e em pé de guerra.

Os verdadeiros homens choram mudos. E não gostam de explicar porquê.

to be continued...

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Olhos amarelos caíram do céu

O ventre dela cresceu três vezes naqueles onze anos. Deu à luz uma rapariga a quem ofereceu um nome de Dr. Zhivago. Fez nascer um rapaz que carregou três nomes: o nome de um avô de origem indiana, o do padrinho húngaro e ainda o do pai. E uma terceira menina gritou para este mundo e sobreviveu à primeira noite nesta Terra, contra todas as expectativas - chamou-lhe, em castelhano, pomba.

O ventre dela crescia muito de cada vez, mas ela acompanhava o marido sempre; mesmo nas caçadas nocturnas feitas sem rede nem parques de caça controlados como os de hoje. De barriga cheia, ela suportava os solavancos, a lama e as incógnitas da noite, em "picadas" extensas onde os homens queimavam a adrenalina e obedeciam ao espírito ancestral do caçador. Sentia verdadeiro pavor do breu cheio de estrelas que os cercava por todos os lados. No entanto, estava ao pé dele, do homem que a levara para o outro lado do mundo: isso era suficiente.

Nessas noites, olhos amarelos de felino piscavam na escuridão, rasteiros ao chão, a metros dele por entre os espinheiros, escondidos pela corpulência de embondeiros centenários ou em lugares recônditos para os quais alguém sempre se esquecia de olhar.

Aquele dia anunciara uma lua gorda e, também ela, plena.
Tinham atravessado um rio onde os crocodilos se passeavam esperando silenciosamente a inocência de uma presa. Ela, molhara o vestido, imaginando dentes pontiagudos. Ele, lendo os pensamentos da mulher, rira-se com aquela gargalhada sonora que lhe franzia os olhos e alegrava a boca. Depois de cruzarem as águas, pequenas luzes amarelas de mil órbitas espreitaram no negro. O aviso fê-la estremecer:

- Cuidado, patrão!

Tita olhou para cima.
Uma onça adulta saltava sobre o jipe. Ela viu-a em câmara lenta e susteve a respiração, paralisada. Alberto carregou a arma e apontou. Ao som do disparo, o felino travou o salto e desmaiou para sempre no solo, soltando terra seca no ar. 

Desmontaram do todo-o-terreno.
Agarrada ao braço do marido, aproximou-se da onça que soltava o seu último estertor.
Um anjo brilhante soltou-se das garras e elevou-se no céu.
A onça ficou linda e fria no chão, fazendo parte da terra.

to be continued...

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Fábulas num baú sem corpo


Numa foto a preto e branco, uma mulher loira e linda de 20 anos, veste blazer cintado sobre umas calças cigarrette à la Grace Kelly que revelam uns tornozelos finos a terminar numas ballerinas. Uma camisa branca, imaculada, abre-se delicadamente sobre o colo do peito. Os olhos escondem-se nuns óculos de extremas arrebitadas e pontiagudas. A cena é anos 50, não por se tratar de uma montagem vintage mas porque acontece realmente nesses anos.
A mulher está sentada num baú de viagem. Por detrás dela, pressentimos um porto, o desembarque recente. Os olhos estão ocultos. Apesar disso, a expressão da cara revela surpresa, talvez um certo desalento. 

Tinham acabado de chegar a Angola depois de uma viagem de um mês, a bordo de um navio que antes fizera escalas na Madeira e São Tomé. Nessas, a fantasia africana de Tita criara raízes e ganhara novos contornos: em cada escala tinham sido recebidos por amigos do recém-marido Alberto ou por diplomatas conhecidos do pai deste. Em todas elas sucediam-se histórias interessantes contadas por gente cheia da cultura do mundo: cada vez mais fascinada com uma nova vida, bem diferente da redoma a que sempre estivera habituada, Tita rendia-se, dia após dia, a uma África de sonho, confabulada pela sua imaginação e reforçada pela novidade.

Agora, na chegada, a realidade esbofeteava-lhe a cara como a humidade peganhenta lhe agarrava as calças ás pernas. A imaginação caiu por terra. Naquele instante, deixou de ser Carmencita ou Tita, virou mulher feita e assumiu nesse estado de adulta o nome que o marido carinhosamente lhe chamava: Mary.

Detestou África nesses primeiros instantes.
Teve saudades da casa dos pais, do conforto de Madrid, das impertinências dos irmãos.
Depois, nos onze anos que se seguiram, compreendeu que a sua imaginação era bem mais curta que o lado mais profundo daquela terra virgem.
Então, amou-a profundamente. 

to be continued...

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Um chapéu cinzento de pau de cabeleira

Tudo começou aqui. 
Mentira: tudo começou um pouco mais acima, numa cidade chamada Madrid-Dos-Anos-Cinquenta.
O telefone tocou, a mãe dela, Carmen, bateu á porta

"Carmencita, sal de la ducha de una vez, es Neli al telefono..."

O cabelo louro escorria das mil lavagens vaidosas. Enfiou-o à pressa na toalha e acorreu a falar com a sua melhor amiga. Atendeu com um sorriso cúmplice mas, à medida que ouvia a voz do lado de lá, os lábios mudavam de forma

"Vale, vale, que sí, que voy, bueno..."

Irritada, contou à mãe: o namorado de Neli, um português chamado José Manuel, tinha vindo visitá-la. Não podendo vir sozinho, trouxera o irmão mais novo. Iam almoçar dali a meia hora e a amiga, querendo namorar sem ter que dar demasiada atenção ao estrangeiro desconhecido, decidiu que teria não um, mas dois paus-de-cabeleira. Era a última coisa que a Tita lhe apetecia pero... todo se hace por la amistad.
Em minutos, enrolou o cabelo numa "banana" bem cuidada e ajustou-o cuidadosamente num chapéu cinzento de aba larga. Vestiu-se de acordo, maquilhou a pele branca e os olhos verdes e, contrafeita, chegou com dez minutos de atraso ao restaurante.
Procurando a mesa com o olhar, descobriu sem surpresa a amiga e o namorado que já conhecia. O inesperado sobreveio logo depois: o coração bateu-lhe desenfreadamente no peito à vista do cabelo preto e liso, da tez morena e dos olhos inteligentes daquele que deveria ser o irmão.

Um mês depois anunciou aos pais que se ia casar com o português. E que iriam viver para África. Carmen e Jesus, no seu conservadorismo castelhano e no desespero de ver a única filha-mulher-menina partir para pouco menos que a Lua, deixaram de lhe falar durante dois meses. O coração partiu-se-lhe mas Tita não cedeu: 120 dias depois de se conhecerem, casavam-se com toda a beleza e dignidade do conto de fadas que ela sempre tinha imaginado.

Dias depois partiam para Angola e para uma das maiores aventuras da sua vida.

to be continued...

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

O cheiro da terra

"Tem... uma... mensagem de voz":

"Olá, sou a Susana, desculpa não ter respondido aos teus mails mas estive em Cape Town; cheguei hoje..."

Um cheiro acre, laranja ocre, emergiu das profundezas e colou-se às minhas narinas; a saudade apertou-me o peito e imagens da terra dispararam invisíveis diante dos olhos. Quis voar para lá.

Eu cresci com as lembranças de África. As lembranças direitas, cronológicas, contadas pela boca dos meus pais, as memórias fugazes, quase de obturador de câmara, dos meus irmãos.
Quando visitei a África do Sul levava as malas leves mas a cabeça cheia da falta que os meus pais ainda sentem. 
Ao voltar, tinha deixado de ser quem era, também em mim a perda se instalou definitivamente.

Desde o dia em que ouvi a mensagem, acordo com o cheiro da terra a sul do planeta.
É uma história que me chama, pedindo que a termine. Ou que a comece sem mais parar. 
Um verdadeiro Milagre.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Às quartas

Quando o dia estiver perto do fim, mais um processo estará acabado. Seguir-se-á o sushi da praxe com o miúdo mais velho e um bom filme no sofá. A essa hora, tu desanuviarás, arrancando melodias ao som rouco da tua voz.
Vais fazer-me falta; mas esta é saudade bonita. 
E boas são as ternuras de mãe em exclusivo que, pelo prazo máximo de dois meses, ainda posso dar-me ao luxo de dar a dois ao mesmo tempo.
Adoro as quartas.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Futilidades

Confesso: hoje acabou-se-me a pilha. Só sonho com calor e praia, chinelo no pé, agua do mar transparente e quente, a pele a brilhar com vida queimada pelo sol, um bom livro que dá apenas o trabalho de pensar.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Miss Spalding II

A meio de um jazz balançado pela influência do Brasil o bebé mexeu-se vigorosamente debaixo da pele. 
Esperanza intercalou com outro tema e voltou à mistura anterior. 
O miúdo voltou a vibrar.
Irónico, disseste

- Só me faltava mesmo é que me saísse um filho a gostar de Jazz.

Abafando o meu riso, acrescentei

- Ou de Jazz e música brasileira...

Um...

- Irra!

... saiu-te espontâneo da boca.

Tive um ataque de riso monumental, o Vicente ficou alerta e quem estava ao lado sorriu, contagiado.

Miss Spalding

Ontem o CCB deu-nos o prazer de ver Esperanza Spalding. Uma menina de 23 anos de me fazer inveja boa. Não só é uma instrumentista brilhante como um animal raro no mundo da música: a sua figura mais que franzina arranca sons lindos de um gigante contrabaixo enquanto canta ritmos vibrantes da América com influências brasileiras.
Soube-me bem voltar a ver e ouvir jazz. Soube-me lindamente fazer algo diferente e reencontrar caras de outros tempos. E fiquei eternamente agradecida, porque sei que esta música não faz qualquer sentido para ti. Conversando sobre isso, ainda nos rimos depois. Era a gota que faltava para encher o meu copo já de si tão cheio de plenitude.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Niñata de mierda com Milk

Havia muito tempo que não fazíamos isto. A lembrança e a sugestão foram tuas e ainda bem, meu Amor. Tinha saudades destas sessões contínuas de cinema, da escolha das combinações mais perfeitas para entrar num rodopio de sensações na sala A e, ainda a esfregar os olhos, preparar o corpo  e a capacidade de envolvimento para as que se seguirão na sala B. Sentia a falta de fingir que não vejo quando olhas para mim no meio de um filme com essa expressão meio-divertida-mas-sempre-ternurenta de quem não percebe como posso entrar tanto e quase fazer parte de uma história fabricada. 
Mas o mais bonito é saber que, mesmo não compreendendo, são esses meus exageros emocionais uns dos grandes culpados da forma como gostas de mim.