sexta-feira, 27 de julho de 2012

descomprometimento

Até dia 20 de Agosto andarei por aqui e por ali, descomprometendo-me de qualquer obrigação que não as de mimar os meus, descansar muito e dedicar-me à pilha de livros que esperava pacientemente por mim. Até já.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

as vésperas

O miúdo mais novo conta os dias de forma inconsciente, recitando números quase sem significado mas imaginando um resultado bom. O mais velho está prestes a chegar e eu conto as horas que me separam do fim das saudades que sinto sempre deste rapaz cujo corpo parece superar qualquer dimensão possível, de dia para dia. O homem debita suspiros que alternam a preocupação pelo que ainda terá de cumprir no dia e meio que resta com a imensa vontade de partir. São assim as vésperas de férias. Antecipações de felicidade e união verdadeiras.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

gratidão

Hoje, na FNAC, fui reconhecida pelo meu livro. 

As suas palavras agarraram-se à minha pele.

Assim disse a rapariga da FNAC, contando depois como o colocara em destaque contra as instruções dos superiores que lhe diziam que, ao não ser conhecida, eu não iria vender.
O maior prazer de escrever é saber que se é lido. As vendas são importantes, claro, mas sentir o amor de alguém por uma história que nos saiu do coração (e das vísceras como diz uma amiga muito querida) não se consegue explicar de tão grato que é.

terça-feira, 24 de julho de 2012

o poder do sono

O oftalmologista virou a mulher do avesso, verificando graduações, fazendo perguntas. Finalmente decretou o diagnóstico: os sintomas eram tudo menos falta de visão, resumindo-se a outra necessidade essencial do ser humano: sono. O médico, no seu jeito gentil, admoestou a mulher e disse que se fosse necessário passava uma receita com a recomendação das horas de descanso a cumprir com preceito. A mulher riu e ele, na sua voz de barítono, encenou um ralhete e mandou-a embora, dizendo que não desejava vê-la até dali a três anos. Quando saiu, ainda a sorrir, a mulher pensou 
Ninguém me vai levar a sério quando eu disser isto, em casa. 

segunda-feira, 23 de julho de 2012

serenidade

Na festa, o concerto improvisado ia começar. O cantor-aniversariante fazia-se acompanhar de um cavaquinho, uma viola-baixo e um contrabaixo. A mulher, à vista deste último, comoveu-se, sempre gostara daquele instrumento. Entre os muitos presentes, o homem e a mulher sentaram-se a uma certa distância um do outro, cerca de um metro que não equivalia a rigorosamente nada. A música começou e o momento era lindo porque feito com verdade. De súbito, outra mulher abriu caminho e sentou-se aos pés daquele que a primeira amava. Como todas as que estão perdidas de si mesma, investiu nele como depois faria com tantos outros. O homem, sem jeito, respondeu educado e finalmente levantou-se procurando um espaço ao lado da que considerava sua mulher. Depois disso dançaram a noite inteira como se não houvesse tempo. Afinal, a presença de outros seres menos felizes não os afectava, a serenidade que sentiam permitia que os vissem mas não que se sentissem afectados por eles. Eles sabiam a quem pertencia o seu coração.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

as rasteiras de um certo mundo

A mulher gostava do inesperado, da inevitabilidade do acaso, da sensação permanente de poder agarrar nas coisas reais ou imaginárias e evadir-se para outro lado. Explicou e ele assentiu, num gesto meio triste. Chamou-lhe nómada, ela gostou, embora se visse mais como um pássaro que precisava da porta sempre escancarada para poder regressar com desejo. Não se considerava dona de nada, nem de si mesma, muito menos dos filhos ou daqueles que amava. Por isso hoje era um dia algo complicado, dia de fazer contas, de fazer listas de pagamentos, dos deveres morais ligados ao compromisso material. Como ela dizia, apenas era proprietária das suas dívidas, essa era a razão pela qual as detestava e as pagava como uma promessa religiosa. As dívidas eram dependências de alguém sobre nós ou tornavam-nos dependentes de instituições. Dever era um dos seus verbos mais detestados, fosse qual fosse o sentido. Era o dedo estendido na sua direcção, a culpa ancestral germinando no interior, a corrente agarrada à pata do pássaro. A mulher sabia que apenas havia uma maneira de a cortar: pagar, cumprir e, a pouco e pouco, fechar os olhos, deixando de ver tudo aquilo que na realidade não era necessário e rir, rir das rasteiras que o mundo de alguns homens ainda tentava colocar no seu caminho.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

textos que me fazem ficar quieta


"Pressoterapia III
O homem desfez com cuidado a tristeza dos olhos que ela trazia.
Era, nessas alturas, como um mestre pintor. Podia fazê-lo apenas com um abraço e foi isso que fez. Um abraço podia ser um mundo, um colo, uma alegria infantil. Mesmo que o corpo não se visse em rodopios.
A tristeza dela vinha de dentro e de fora, era dela e não lhe pertencia. Carregava-a com o mesmo à vontade com que carregava outras coisas, tarefas a cumprir, prazos, pagamentos, rituais de vida. Detalhes que não se questionam.
No abraço, ao chegar por fim, depois do trânsito e do calor, os olhos dela perdiam a tristeza e o verde passava a cinzento. Quando lho dizia, ela respondia

É a luz. Muda-me a cor dos olhos.

Podia dizer que não, que era ele, mas o medo de ser lamechas era mais forte e a luz servia-lhe bem." 

(Texto escrito pela Patrícia Reis no seu blog que todos os dias leio e que, em dias como o de hoje, me cortam a respiração e me enchem de orgulho de conhecer seres humanos como ela, capazes de escrever assim.)

terça-feira, 17 de julho de 2012

a obra do irresponsável

É já amanhã (espero eu) o meu dia de libertação. Faço o exame final e, a partir daí, a vida suaviza-se. Uma linha a menos na habitual lista de tarefas, noção idiota de dever cumprido, menina-bem-comportada-e-consciente que me acompanha desde sempre. Uma Licenciatura iniciada há mais de vinte anos, completa-se agora. Vontade de ter canudo? Nada disso; sentido prático absoluto e vontade de poder (um dia) aprofundar outros temas com maior prazer (sim, eu gosto de estudar). Graças a Deus com a idade adulta tenho aprendido a assumir o meu lado mais irresponsável. Uma verdadeira obra.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

injecções na veia

Me-mo-ri-zar. De-co-rar. Verbos horrendos que ela detestava. Implicavam esforço, obrigação, conhecimento adquirido quase sem consciência, os conceitos atropelando-se uns nos outros em listas infindáveis. A mulher sempre adorara o conhecimento em comprimidos de histórias que se tomavam de boca aberta no espanto da descoberta. Agora injecções na veia, dolorosas e no formato 'tudo de uma vez', não, não era a praia dela, como dizia o clichée. Leu o desabafo e sentiu-se culpada pelo tempo perdido. Então, escreveu um ponto final e voltou às listas e páginas intermináveis. Tinha de ser. 

sexta-feira, 13 de julho de 2012

o amor, tem arranjo?


E então, ela perguntou:

- O Amor, tem arranjo?
- Tem,...

Disse ele,

- ... basta apenas levá-lo á oficina certa.
- E qual é?

Perguntou ela, ao que ele respondeu:

- Tem quatro nomes: Consciência, Responsabilidade, Humildade... e muito Amor.

Ela sorriu.



agora, em clip, muito melhor



(obrigada, Carlos)

quinta-feira, 12 de julho de 2012

em jeito de tartaruga

Estou na recta final, pensou a mulher, faltam-me dois cagagésimos para chegar ao fim e a preguiça ultrapassa-me. Os cagagésimos resumiam-se a um trabalho individual e um exame de peso, dali a quatro e sete dias, respectivamente. Vais deitar um ano a perder?! Lentamente, como um caracol que se estica e desenrola para sair da casca, a mulher começou a ler os materiais. Sentia-se como uma tartaruga a ter que percorrer um longo caminho não no mar mas em areia seca e demasiado fina. Tinha que ser e este tinha, tinha muita força, a tartaruga não se queria enterrar.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

deixa-te estar quieta




Habituada a resoluções, a mulher não sabia o que fazer. Se fosse um amigo, dava-lhe uma descasca, dir-lhe-ia que o melhor seria começar a espevitar e depois daria o seu braço como apoio. Se fosse o filho adolescente, um abanão e dois beijos logo de seguida não retirariam a cara de nojo militante própria da idade, mas pelo menos obrigá-lo-iam a reagir. Se fosse um cliente, mais fácil ainda seria, bastava tomar nas suas mãos o trabalho dele e agir. O problema é que era o seu corpo, hoje de certa forma esvaído, sem reacção. E o corpo não vai em admoestações, e muito menos aceita que alguém tome como seu o seu trabalho. A mulher resignou-se e obedeceu. Hoje, o corpo mandava e a ordem era: deixa-te estar quieta.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

novo mundo

O mundo já não é o que era. Para muitos, esta será uma visão pessismista. Eu, não consigo vê-lo dessa forma. Com todas as convulsões, acredito que tenhamos aprendido a criar nas nossas vidas menos desperdício, tendo mais prazer e mais consciência naquilo que consumimos, ficando mais livres de pressões materiais e mais atentos a valores humanos. Onde muitos vêem poucas oportunidades, eu consigo achar que é possível descobrir algumas. Onde alguns observam apenas o mal, eu vejo empresas a criarem alianças assentes na confiança, nas trocas, em parcerias verdadeiras, muito longe do bullshit da nomenklatura do marketing, típico das duas décadas anteriores. Visão naif, demasiado optimista, a minha? Alguns dizem-me que sim. Mas não consigo ver as coisas de outra forma. Talvez porque desde o início do ano decidi impermeabilizar-me contra a desgraça militante e generalizada, não assistir a telejornais, retirar da minha vida aqueles que não me querem bem de verdade, mimar muito e muitas vezes todos os que me amam seja com que matizes for e focar-me em absoluto naquilo que quero e gosto de fazer. O meu marido diz que eu sou uma espécie de nómada. Porventura é verdade. Sempre acreditei que às vezes é preciso separar-nos do mundo que conhecemos para descobrir outros mundos bem melhores. Para mim, isso é viver. E este é um verbo que eu adorarei até morrer, nada nem ninguém me poderá tirar isso.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

em boas mãos

Eram perto das nove da noite quando a médica recebeu a criança, acompanhada da mãe e do pai. Com o carinho do costume, observou o rapazinho da cabeça aos pés, diagnosticou uma virose chata, o miúdo entre risos, estetoscópios transformados em auscultadores do coração, instrumentos de observação dos ouvidos metamorfoseados em contadores de namoradas,  espátulas de garganta recriados enquanto objectos de cócegas. Os pais foram descansando a preocupação, objectivando as dúvidas com a segurança rara de quem sabe estar em muito boas mãos. À saída, a mãe comentou: 

- É incrível como a conheço desde os tempos do meu filho mais velho e mantém essa boa disposição mesmo a esta hora da noite.

Com um sorriso do tamanho do mundo, a medica respondeu:

- Mas não é suposto...? Eu estou a fazer exactamente aquilo de que gosto!

Era uma grande sorte, pensou a mãe. Ainda existem médicos assim.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

formas de estar

As duas mulheres entraram no edifício. Na recepção, não precisaram de dizer nada uma à outra: os tectos baixos, as paredes forradas de madeira escura, a iluminação artificial, fizeram as vezes das palavras. As mulheres seguiram o homem gordo, a mais crescida como se tomada de uma velocidade súbita e fechando a cara, a outra entre uma vontade irreprimível de rir e um sufoco que se avolumava na garganta e no peito. Por fim saíram á rua, dando graças ao sol, ao oxigénio e a uma vida que existia fora daquelas paredes. Uma pequena dor de cabeça tinha contudo vingado. Na verdade era normal, disse uma delas, tinham por momentos sentido a sensação de estar fechadas num caixão, em vida. As duas concordaram que muitas empresas eram mesmo assim. E essa não era em definitivo, a forma de estar de nenhuma das duas: sabiam que no momento de partir preferiam ser lançadas em cinzas ao vento ou ao mar.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

coisas feias

Quando coisas feias acontecem à nossa frente e nada podemos fazer, é horrível. É uma sensação de impotência horrorosa que se traduz, ao final dia, numa dor de cabeça dos diabos. Talvez seja a maneira que o corpo encontra de cuspir a fealdade do mundo. Irra.