terça-feira, 30 de setembro de 2008

Nunca vou esquecer o calor da tua mão

A verdade é que sempre que olho para eles vejo essa emoção que se escreve colo. 
Por mais que se tente, por muitas revoluções que procurem fazer os feiticeiros de palavras e os pseudo-donos dos significados do mundo, colo que é colo é o peito da nossa mãe e os joelhos do nosso pai. 
O colo está para além do físico, para além do explicável. Por alguma razão passamos uma vida inteira a confundir as coisas: procuramos colo nos braços de alguém com quem escolhemos viver e finalmente percebemos que, quando muito, pode dar-nos conforto; olhamos para uma amiga querida e tentamos novamente até chegar à conclusão de que o que temos é um ombro e um ouvido; e os irmãos, mesmo os mais extraordinários, dão-nos quando muito a ligação do sangue e uma real parecença ao nosso pai ou à nossa mãe.
Depois desses anos todos, compreendemos finalmente: colo é coisa de pais.
A mão que nos segura no primeiro dia de escola; o olhar aflito, a disfarçar, que diz, eu volto, não te preocupes; os pés firmes à beira de água enquanto rebolamos, virgens, num dia de suestada, sabendo que ele estará ali para nos ensinar e proteger; o chegar a casa depois de um dia de escola e saber que nos vão perguntar tudo, que é uma chatice, mas no fundo sabendo que é por isso que eles estão lá e sempre estarão; o desculpar permanente das maiores desconsiderações, impertinências ou agruras da vida. 
Tudo isto é o colo insubstituível que se grava a ferro na nossa memória, nas nossas mãos, no nosso peito, nos cheiros e sabores que ocupam espaço.
Com este tamanho todo, eu ainda preciso muito de colo.
E tenho a infinita fortuna de o poder ter a dobrar.

Ter pais bons é ter muita coisa. 

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Abri o alvéolo e só hoje adormeci

Tinha tudo perto e parecia nada alcançar. 
Corria encapsulada dentro de mim inventando misérias, encontrando desgostos, desbravando privações. 
A visão, disforme, oferecia perspectivas alucinógenas sem cor de tanta angústia, sem contornos de tanto medo e desesperança.
No entanto, nada daquilo era meu. Nada disso é meu.
Soube-o hoje à tarde.
Existem Anjos na Terra. 
Eu tenho Uma. Como ela diz, faz-me muita companhia. 
Faz muito mais que isso.
Faz tanto que percebi a brecha no meu alvéolo, a porta absolutamente escancarada do meu alvéolo.
Não pode ser. 
Só eu a posso fechar. E eu quero. 
Quero, para voltar a sentir bonito.
Tenho sono. Tenho muito sono.
Que bom sinal. 
Vou aninhar-me aqui, como eu preciso: sozinha. 
Apenas a minha luz pequenina a ronronar nos meus braços.

 

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Outono

Hoje passei na Ribeira. Fiz de propósito para chegar cedo: gosto muito dos mercados logo pela manhã. 
As braçadas de espinafres, grelos e outros legumes frescos parecem flores acabadas de colher e tal como elas exalam um perfume a verde de terra.
 As leguminosas enchem sacos altos onde só apetece enfiar as mãos e roubar algumas. As maçãs e pêras chegam deitando doce pela casca como se quisessem dizer, cheias de pressa, este é o nosso momento, antes que daqui a nada cheguem os dióspiros, marmelos e anonas reclamando o seu posto na altura mais fria do ano. 
A mudança de estações baralha-me sempre. Sobretudo nos dias que separam a que é da que ainda não é mas vai ser. Só que por muito que eu me esforce, confesso que não consigo deixar de gostar de um Outono bem assumido. 
Outono sabe a doce de alperces e a compota de tomate. Cheira a marmelos e castanhas assadas. Põe na barriga o aconchego quente de uma sopa rica de feijão. Traz os amigos de volta a casa para confidências ditas ou apenas percebidas, jogos e
discussões de tabuleiro, sessões de cinema onde só me apetece observar e ter plena consciência da sorte que tenho de ter tanta gente boa em volta. 

Outono é uma palavra linda.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Desculpa Audrey

No mundo das estrelas,
a Audrey Hepburn é a mais bonita.

No mundo real,
ninguém supera a minha mãe.

Desculpa, Audrey.
Mas hoje a Tita faz 77 anos.

E quem a conhece ou alguma vez a viu, sabe.
Sabe que não exagero.




Ontem

Ontem não escrevi.
 
A natureza deixa-me sem palavras... dá-me a noção real da nossa importância. 

A nossa mente é mesmo pequenina. 

A vida tem a força que pensamento nenhum terá alguma vez capacidade de suplantar.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Bruma













As copas dos pinheiros desapareceram.Troncos sem cor acompanham o meu caminho. Ao longe, desconheço o fim, a muralha de branco interrompe-o. Abro a janela. O ar. Partículas finas como pequeníssimas agulhas cercam-me. Arrepio. Mais à frente, o rio perdeu-se. O topo da enorme estrutura dissolve-se no cinza como se um bando de corvos audazes tivesse soprado. Milhares de gotas minúsculas conspiram logo abaixo do nível da minha janela, escondendo duendes e fadas a caminho da cidade. Todos riem. Eu também. Adoro Lisboa num dia de nevoeiro a sério.

domingo, 21 de setembro de 2008

Há ervilhas que são cor-de-rosa

Quando eu era pequenina, o leite chegava da quinta do meu pai em bilhas grandes de metal, os ovos eram verdadeiramente amarelos e vinham em caixas que tinham sido usadas mil vezes, e as leguminosas entravam pela porta das traseiras em grandes sacos de serapilheira que pesavam como chumbo. Um dos meus grandes prazeres na altura, era fingir um avental e sentar-me na cozinha com a Emília, a nossa empregada de toda-a-vida, a descascar ervilhas. Ela esticava-se e puxava do armário de cima duas taças grandes. Depois, começava a emoção: crac, faziam as vagens ao abrir; fresco, era o odor que se escondia lá dentro; doce, era o sabor dos bagos que não chegavam à taça grande e estalavam, crus, na boca.
Guardo com carinho na memória todas estas sensações. Talvez por isso gosto tanto de ervilhas.
E de certeza que é por isso que me esforço para que os mais pequenos que tenho por perto alguma vez consigam experimentar o mesmo.
O site da Rosa Pomar fez-me voltar a estes momentos. É um blog e também uma loja na qual se vendem peças de retrosaria, onde os bonecos para crianças são feitos de pano e têm flores como olhos, e também babyslings, para que elas andem ao nosso colo bem junto ao coração. É o regresso à simplicidade das coisas, ao tempo que se tem e não se perde, aos gestos tranquilos do antigamente recuperados para os dias de hoje. 
Chama-se a ervilha e como se já não fosse bonito, ainda por cima é cor-de-rosa
www.aervilhacorderosa.com

sábado, 20 de setembro de 2008

Bailarina

Tinha 5 anos quando me ensinou a ler. Quando fiz 14, secou-me as lágrimas do primeiro desgosto de Amor. Completei 16 e chamou todos os nomes a um que não me tinha largado o pé e que depois de o ter, me traiu. Aos 19, emprestou-me o seu precioso Mini preto a cair de podre mas cheio de força com que galguei passeios e andei a 80 em terceira, por entre risos de amigas e a excitação da carta tirada há um mês. Aos 26, casei-me pela primeira vez e ela comoveu-se. Aos 32 recebeu o meu filho como se fosse dela e aos 42 voltou a emocionar-se com o meu segundo casamento. 
Eu sei que também me roubou o meu soutien preferido no dia em que eu mais o queria usar; sei que de vez em quando é picuinhas; sei que lhe saltavam os elásticos das meias quando corria, para sua grande irritação e também me lembro que dormia agarrada a mim que nem uma lapa porque tinha sempre muito frio. 
Mas talvez seja por tudo junto que aos 43 anos tenho toda a gratidão do mundo para lhe dar e ainda hoje não consigo contar o quanto gosto dela porque me sabe sempre a pouco. 
50 anos não se fazem todos os dias. Parabéns, bailarina de sonhos.

Afinal as estrelas têm alma

Antigamente, quando as pessoas morriam, ninguém explicava a uma criança o que acontecia depois. Era estranha, a coisa. Por um lado, e por causa da nossa educação judaico-cristã, obrigavam-nos a acreditar que, depois de fechar os olhos pela última vez, todos ascenderíamos magicamente em direcção ao céu (isto, claro, se nos portássemos bem) e que isso era muito bom, sendo que melhor ainda era ficar por lá. Mas quando a morte realmente chegava, a família inteira desfazia-se em lágrimas e tristeza; e não era raro usarem o negro como cor única durante meses ou anos, como se tivessem culpa ou fosse castigo. Como é natural, as crianças cresciam temendo a morte e acumulavam sérias dúvidas sobre se a ascensão para o imenso azul seria assim tão boa...
Sei que tive medo durante muito tempo. E quando o meu filho nasceu, perguntei-me muitas vezes como deveria abordar este assunto para que não herdasse os mesmos temores. Nessa altura, alguém (que tenho a imensa pena de não me lembrar quem para lhe agradecer por toda a eternidade, na terra e no céu) me contou a versão que costumava contar aos pequeninos lá de casa: "quando morremos, cada um de nós transforma-se numa estrela e assim pode ver os que estão cá em baixo, todos os dias". Achei lindo. E por isso, desde esse dia senti-me reconfortada como se fosse uma criança.
As estrelas-almas-pessoas dão muito jeito. Para mim é mesmo bonito. E se alguém achar lamechas, olha, temos pena.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Risos no Céu

Todos os dias, saímos de casa pouco depois das sete da manhã.
O caminho é longo, mas vamos alternando florestas cerradas de pinheiro-verde-brilhante com imagens de mar mais ou menos revolto, até chegar ao rio lento de automóveis que dia após dia impede que cheguemos à ponte mais bonita do mundo mais depressa.
Hoje o dia acordou cinzento. Muito escuro. Não me importei. Há alturas em que gosto de dias assim. Qualquer coisa no banco ao lado me fez virar a cabeça: olhando para fora da janela, o meu filho fazia malabarismos com a pele da cara, rodava os olhos em posições indescritíveis, abria a boca para lá dos limites. Dei uma gargalhada.
- Estou a fazer caretas ao tempo, mãe. Pode ser que ele se aborreça e vá embora.
Tive a certeza que Deus, Buda ou Ganesha riram no céu também. Ou em toda a parte.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Luz

Sentia-me mal. Mal mesmo. Naquele dia, eu tinha perdido a luz. A minha. E a outra,linda, que se instala no ventre de uma mulher e cresce lá dentro acrescentando-se á nossa. Eu tinha perdido esta e parte da que era parte de mim. Talvez por isso, andava confusa pela Misericórdia á procura de algo tão prosaico como um notário. Tinha visto nas páginas amarelas,a morada indicava que era por ali. Eu não o via. Entrei num alfarrabista; sempre me deram conforto, os livros. O personagem verdadeiro - o senhor alfarrabista - estava sentado numa cadeira de praia daquelas de metal e plástico às riscas, bem no meio da livraria. Era uma visão bizarra, aquela. Sentado ali, mais baixo que os móveis de exposição, lia descansadamente como se estivesse num areal.
- Desculpe, podia-me dizer se há um notário aqui perto?
Levantou os olhos do livro e olhou directamente para os meus:
- Há sim. Vira aqui à sua esquerda e...
As palavras revolveram-se na minha mente triste e esta desviou-as do seu caminho.
- Pode repetir? Peço imensa desculpa,não percebi.
Explicou de novo, com paciência, sempre sentado na sua cadeira de praia.
- Obrigada - respondi com um sorriso tímido, preparando-me para ir embora.
O alfarrabista fez-me parar.
- Sabe uma coisa?
Fiquei suspensa.
- Você é uma mulher linda, sabia?! - disse elevando o tom de voz.
Corei, sorri de novo e saí a correr, ouvindo-o ainda a dizer:
- Você é linda!!!
Aquela luz, eu não ia recuperar mais. Mas parte da minha estava de volta. 
Perdera a culpa. Voltara a ganhar a certeza de ser.


(Esta nota merecem-na todos os queridos amigos que tenho a sorte de ter: esta história aconteceu há muitos, muitos anos. A nova luz que me escolheu continua cá, prontinha para os mimos e carinhos que sei que lhe vão dedicar.)