sexta-feira, 31 de agosto de 2012

barco negro



De manhã temendo que me achasses feia,
acordei tremendo deitada na areia,
mas logo os teus olhos disseram que não
e o sol penetrou no meu coração.

Vi depois, numa rocha, uma cruz,
e o teu barco negro dançava na luz;
vi teu braço acenando, entre as velas já soltas.
Dizem as velhas da praia que não voltas...
São loucas! São loucas!

Eu sei, meu amor,
que nem chegaste a partir,
pois tudo em meu redor
me diz que estás sempre comigo.

No vento que lança
areia nos vidros,
na água que canta,
no fogo mortiço, 
no calor do leito,
nos bancos vazios,
dentro do meu peito
estás sempre comigo.


A primeira vez que ouvi este poema de David Mourão Ferreira cantado por Amália, tinha treze anos. Lembro-me que me deixou sentada no chão com uma impressão fortíssima que fazia ligação directa ao coração e daí a um nó na garganta. Nunca mais me esqueci dele ou dos acordes iniciais da guitarra com as pancadas secas na madeira. Ontem voltei a ouvi-lo na voz de Teresa Lopes Alves. Comovi-me até às entranhas, mais uma vez. Palavras, música e voz. Raras são as uniões mais sublimes.


quinta-feira, 30 de agosto de 2012

leituras de verão VII


A capa do meu não é esta mas para o caso não interessa. Foi-me trazido de Praga e conta a correspondência entre Rainer Maria Rilke e um aspirante a poeta. Absolutamente delicioso, lê-se num sopro, com lápis ao lado para ir sublinhando passagens, e o polegar e indicador prontos para marcar as páginas que não queremos esquecer. Ideal para quem quer fazer da escrita uma parte importante da sua vida, vai por essa razão ficar na minha mesinha de cabeceira para sempre ou, por outras palavras, para que não me esqueça por que razão escrevo e preciso de o fazer.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

leituras de verão VI

Parrot e Olivier na América é descrito na contracapa como 'uma improvisação sobre a vida de Alex de Tocqueville'. Improvisação ou não, é um livro extremamente interessante que me agarrou pelos cabelos e não desistiu até que eu, quase sem fôlego, devorasse a última página. Uma extraordinária lição de História que passa pelos tempos da Revolução Francesa e que depois se vira para a América, fazendo-nos entender a génese do 'carácter americano' no seu contraste com as sociedades europeias, em especial a francesa. Com uma riqueza extrema de pormenores, a linguagem de Peter Carey é tão visual que nos faz ler a obra como se víssemos um filme daqueles bons onde o drama se enrola e desenrola com trejeitos de grande humor. Ainda por cima baseado na verdadeira história de Alex de Tocqueville, é mais um daqueles a não perder e a ter na biblioteca. Este tem sido um Verão realmente pródigo.

(obrigada Paula M.P!)

terça-feira, 28 de agosto de 2012

também este dia passará

A mulher sentia uma pedra no peito. Não sabia se era fruto do assalto da amiga no dia anterior, em plena luz do dia, das conversas sobre roubos e violações mais tarde, quando a noite já entrara, ou dos sonhos turbulentos resultantes de tudo isso que a tinham separado do descanso, sem que deles tivesse qualquer espécie de lembrança a não ser a da sensação da dita pedra no peito temperada por algumas imagens difusas espalhadas pela memória. Saiu demasiado tarde de casa. Deu por si a sentir medo pelo filho mais novo, tomou consciência das palavras que lhe dissera e que não queria proferir, as palavras da desconfiança nos outros, do mal que nos rodeia mesmo que não o queiramos ver. Odiava a desconfiança, odiava a necessidade de a ter. O seu mundo imaginado e sempre útil era um mundo seguro, bonito embora por vezes desequilibrado, contudo um mundo no qual as pessoas têm sempre uma segunda oportunidade. Era sempre esse mundo que a fazia avançar e sobretudo acreditar. Ela não conseguia viver sem acreditar. Respirou fundo e então acreditou que este dia fazia parte do equilíbrio da vida. Como parte desse equilíbrio, também ele passaria.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

tapada da pena


Aos domingos tentamos evitar a praia. Temos horror das filas de trânsito, das intermináveis horas de saída dos parques de estacionamento que acabam por estragar o dia. Assim, tentamos organizar outros programas, de preferência aqueles que nos permitam mostrar algo de diferente aos miúdos e passear. Ontem escolhemos a Tapada de Mafra. Nenhum de nós a conhecia e a descrição tinha-nos convencido: uma Tapada dos Reis, uma maravilhoso 'jardim' imaginado de oitenta hectares com árvores centenárias, veados, javalis, lobos e aves de rapina. Fizémo-nos ao caminho, entusiasmados, já inventando mil histórias de príncipes e princesas para contar ao mais novo.
Que dizer da desilusão? Muito, infelizmente. A desilusão não passa pelo espaço, pela natureza ou pela oferta genuína. Passa pela pobreza do cuidado, pela falta de brio e de aproveitamento do entorno. O recebimento é feito por uma bilheteira pouco simpática onde a fila de pessoas se mistura com a fila de tantas outras que esperam o 'circuito do comboiozinho'. Logo aí, a vergonha se mistura com tristeza. Dezenas de turistas (internos e externos) esperam de pé, ao sol. Não há um toldo bonito com bancos de madeira para os resguardar. Passado o portão, um café miserável oferece restos de comida e menos de nada de gelados (em Agosto????). A caleche (uma das alternativas de passeio) não funciona por ter uma roda furada (a um domingo???). No percurso a pé, as tabuletas de indicação estão tortas, informam mal, o rio está seco, as vedações são pobres e mal amanhadas. Ninguém nos conta uma história ou dá valor ao passeio. É triste pensar que se  a Tapada fosse nos Estados Unidos ou mesmo aqui ao lado, em Espanha, não haveria uma árvore por identificar, e certamente os percursos seriam assinalados por episódios da época, mais 'recriados, ou não. Ficámos tristes e desconsolados. Esta falta de orgulho, de preservação e aproveitamento do que é nosso e do qual poderíamos retirar valor, é pungente, faz reiterar muitas outras coisas sobre o nosso ser português, e isso irrita-me. Sou meia espanhola mas adoro Portugal. A nossa falta de brio, consome-me.
Valeu o entusiasmo do miúdo mais pequeno na descoberta dos veados, javalis, aves de rapina, cada pedrinha e bocadinho de árvore pelo caminho. Daria tudo por ter multiplicado essa descoberta por mais três.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

início


Uma sessão de Batman com o miúdo mais velho. Reprise para ele, estreia para mim. Assim começa o meu fim de semana; com um bocadinho de namoro entre mãe e filho. Convenhamos que sabe bem. 
Façam o favor de ser felizes.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

metamorfose


Noites passadas em branco transformam-nos noutras pessoas.Dormir é mais importante que comer.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

coisas de mãe

Esta semana descobri uma foto do miúdo mais velho no seu primeiro ano de escola. Tinha três anos. A foto fez-me ficar com um aperto no peito com os centímetros percorridos desde aí e todos os acontecimentos da sua vida. Mais ainda, quando o irmão mais novo se prepara agora para entrar no mesmo Colégio, com a mesma idade. Ironia das ironias, hoje soube que vai ficar no agrupamento de crianças designado com a mesma letra que a do irmão, há doze anos atrás. Ainda dizem que não existem concidências. Existem sim, e estas são aquelas verdadeiramente bonitas que nos tocam bem fundo no coração.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

o todo e a parte

O meu pior defeito é a impaciência, disse a mulher, pendurada ao telefone. A internet emudecera. Era daquelas situações que a punham fora de si, a faziam sentir-se pouco inteligente, perdendo horas e mais horas em chamadas com interlocutores de voz simpática e condescendente que faziam perguntas estrambóticas para ela sobre cabos de rede, painel de comandos ou a que windows está ligada, quando na verdade ela preferia usar os equipamentos da maçã, mais lindos que todos os outros, mais fáceis de usar que todos os outros, mas, numa situação de avaria (igual a pânico), tão complicados como todos os outros. Depois de uma hora literalmente pregada ao auscultador, a questão resolveu-se da maneira mais estúpida do mundo, o verdadeiro cliché de sempre da informática: desliga tudo e torna a ligar. Se ela já o tinha feito? Sim, sem resultado. Mas a diferença era o tudo. Ela, a analfabeta das ligações desligara apenas uma parte. Não há mesmo paciência, pensou.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

a volta

Desfizemos as malas e arrumámos tudo. O nosso espaço, recém-acordado da sonolência do seu descanso sem a família, acolheu-nos, cheirando a limpeza e frescura. Mais tarde, quando todos dormiam, cirandei pela casa. Descalça, muito devagarinho, abri as portas para o jardim para não acordar os cães e respirei a noite na minha cidade. Como eu sempre disse e tornarei a dizer a beleza das férias não é apenas o durante; é o antes, o durante e o depois. É muito bom estar de volta.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

leituras de verão V

A intenção era boa.  Sair dos géneros, fazer um intervalo, mergulhar nas águas do bom entretenimento. Assim me dispus a entrar de cabeça num livro mais descomprometido,   Os seis suspeitos de Vikas Swarup. Depois de 50 páginas, sucumbi à impossibilidade da sua leitura. É muito mau, cheio de previsibilidade, personagens que são clichés, nem sequer o ritmo prende. Longe de poder oferecer o suspense ou a trama urbana de uma saga como a de um Millenium, chega a ser pretensioso na veleidade de querer ser um policial. Usando a belíssima regra de Daniel Pennac votei-o ao abandono e entrei num dos mais recentes de Peter Carey. À terceira página, dei por mim a sorrir.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

leituras de verão IV

A Fera na Selva, a novela de Henry James que li ontem num sopro, é irritante. Irritante porque nos incomoda, irritante porque faz sentido, seja qual for a época. Uma história simples, conduz-nos à constatação de quantos de nós não vivem esta vida porque simplesmente não se permitem senti-la. Em permanente defesa, fechados nos seus casulos, separam-se da existência e, ao fazê-lo, erram por ela. Perturbador, este livro ameaça: afinal, será que todos não deixamos de viver por um momento que seja? A guardar na mesa de cabeceira, como forma de prevenção e retorno.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

leituras de verão III

- Os mapas deles só desenham as costas. Têm um mar vazio.
- E como é que pensas fazer para encher esse vazio?
- Ponho lá a direcção dos ventos e das correntes, que são as estradas do mar. Ponho lá a força destes ventos e destas correntes, que dão a velocidade dos barcos, porque no mar, quem anda são as estradas. Ponho lá as cores da água, que dizem as profundidades. Ponho lá a forma das núvens que anunciam tempestades.
- E como vais ficar a saber tudo isso?
- Terei navegado por todas. Ficar em terra é uma perda de tempo.
(...)
Erik Orsenna in A Empresa das Índias 

Este verão tem sido pródigo em bons conselhos de leituras. Este livro de Erik Orsenna que terminei ontem, é mais um deles. O romance histórico é um dos meus géneros favoritos talvez por ter crescido numa fase em que em Portugal a história parecia vergonha e em vez de ser contada com fantasia de reis e princesas, dava-se a crianças de onze e doze anos uma perspectiva sociológica da mesma, com especial relevância para a luta de classes... Enfim, uma história confusa e que não perdurava na memória ou muito menos na imaginação. A Empresa das Índias conta Cristovão Colombo nas memórias do seu irmão Bartolomeu, e é sobretudo a parte do Descobridor que não conhecemos, o antes das caravelas que o levaram às Índias que sonhava e que depois revelaram ser outro continente bem diferente. Muito bem escrito, prendendo a atenção desde a primeira página, é aquilo que o ensino da História deveria ser: empolgante, divertido, com ingredientes que perduram na memória para todo o sempre.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

leituras de verão II

Serra Morena. Um ráio esturrica o casal, em luz e carne. Os filhos ficam orfãos, com destinos diferentes. Antônio, o menino que não cresce. Nico, o patriarca engolido por um bule de café. Júlia, a menina em fuga permanente. Um lugar onde as sombras da terra e da água convivem. Onde a morte e a vida são o mesmo mundo. Um poema seco à humanidade de cada um de nós.

Assim é descrito na contracapa o livro Os Malaquias. Se o resumo espicaça curiosidade, a história, pejada de originalidade e de um ritmo vigoroso, impede refrear a cadência da leitura, abrindo-se numa voragem incessante que não pemite uma paragem sequer. Talvez uma das melhores obras que li este ano, pela diferença, pela beleza das imagens, pela coragem em sair do esterótipo ou do 'permitido' na literatura. Este é o género de ousadia de escrita ao qual eu adoraria chegar.

(obrigada, Bé!)

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

leituras de verão I

Patti Smith era um dos meus ídolos numa adolescência mais tardia. Lembro-me perfeitamente da primeira vez que a ouvi: a Patti era muito mais que rock & roll. Na festa de garagem da Luisinha, os acordes iniciais de Because the night fizeram-se ouvir e um grande amigo, que sabia como as palavras eram importantes para mim, disse, tens de ouvir isto. Fiquei embasbacada com o sentido das frases, aquilo era muito mais que música ou, por outra, dava mais grandiosidade a esta última. A partir desse momento não descansei enquanto não soube mais sobre a autora. E, na verdade, apenas agora sei estar mais perto. Apenas miúdos é a história de Patti Smith, mais precisamente a história da sua relação com Robert Maplethorpe. Devorei-a em menos de três dias, fascinada com tudo o que não sabia e com esta coisa maravilhosa de quando o real supera a ficção. A não perder.