quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

O dar das mãos

A porta do quarto dos meus pais ficava fechada, à noite, quando todos íamos dormir. Só se transpunha quando havia um motivo de força maior. Dores de barriga eram razão suficiente para a abrir; pelo menos para mim eram, ou talvez eu tivesse o descaramento de filha mais nova que os meus irmãos nunca se tinham atrevido a ter. O facto é que, nessas ocasiões, eu rodava a maçaneta devagarinho e entrava no mundo privado deles. Procurando fazer muito pouco barulho, dizia em surdina "mãe, dói-me aqui". Ela acordava, chegava-se um pouco para lá e eu entrava no rasto quente que o corpo dela tinha deixado. Depois, punha as mãos na minha barriga e dizia "vais ver que vai passar". Demorava muito pouco até um calor especial penetrar na minha pele; o ventre, inexplicavelmente, deixava de doer e eu adormecia nos braços dela.
Nos anos que durou a minha infância estive convencida que as mãos da minha mãe eram mágicas. Quando me tornei adolescente, duvidei disso, como na altura se questiona quase tudo o que vem de quem nos gerou. Depois, fiquei mulher cheia de certezas e considerei que o fenómeno não passava de sugestão. Hoje, acredito que há algo mais. Para além da beleza, para além da experiência que envolve aqueles dedos esguios  de unhas perfeitas, existe de facto uma magia ou chamem-lhe o que quiserem. E, se for honesta, sei que apesar da passagem dos tempos e das idiotices que com os anos vêm e vão, nunca deixei de procurar as mãos dela sempre que me senti desamparada.

Ontem, veio visitar-nos. O meu filho mais novo mexia-se na minha barriga. Ela pôs as duas mãos e disse "Olá Vicente, pequenino". A criança não mais parou, em movimentos completamente fora do habitual, sobretudo para quem geralmente reage a mãos desconhecidas com recolhimento. "Avó Tita", parecia dizer, "mal posso esperar por te reconhecer, agora que já sinto quem és."

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

WallpaperS

Chegaram a casa, a porta abriu-se e viram o primeiro motivo na parede da sala de jantar. Ela bateu as palmas de contente, ele disse, mãe, está lindo. Depois, ele correu para o seu quarto e ela, amparando o ventre, tentou correr. A porta estava aberta, secando a cola. Ela bateu palmas de novo, ele encostou-se à parede e disse deste gosto ainda mais.
Tanta coisa por causa de dois papéis de parede novos, diria alguém. Nós, não.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Segunda às 9.

Os logotipos das mega-produtoras de Hollywood surgem no écran pintados por um sem fim de botões. O público não aguenta e esboça um sorriso. Depois, o filme entra pelas pessoas adentro, suavemente, numa história linda, sem pontapé e chapada, sangue ou violência, violações ou assassinatos, desenrolando uma ideia invulgar. O público assiste e fica em silêncio. Nem mesmo as malditas pipocas são audíveis, benza-o Deus. A assistência sorri, ri, fica de lágrimas nos olhos, sente pena e alegria, misturando os seus sentimentos com os que surgem diante dos seus olhos. É certo que também prevê o final mas que mal tem se ao longo de três horas o cinema voltou a ter a capacidade de maravilhar? Robert McKee diz que quando uma história é boa e bem contada, as pessoas não conseguem proferir qualquer palavra à saída. Aconteceu ontem, numa das salas de cinema de Lisboa. E acredito que voltará a acontecer hoje, amanhã e muito depois.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

O homem verde

Tinha trabalhado que nem um cãozinho a semana inteira. Entre o desespero de aprender a estudar, as dores de crescimento de uma nota perdida que vem mais baixa do que a concepção de si próprio, e muitas horas na dimensão da sua idade a queimar tempo com trabalhos de casa, o puto estava exausto e a precisar urgentemente de um doce.
Eram nove da noite quando as luzes se apagaram em sentido figurado: o écran mostrou, com efeitos de surround, as primeiras imagens da versão mais recente de Hulk. Os olhos do miúdo brilharam e fitaram-me em silêncio dizendo mil coisas. Borrifei no papel de mãe e entreguei-me ao outro papel de mãe. Encostei-o a mim e vibrei com ele viajando nos mistérios do verde. 
Deitou-se tarde e a más horas, cheio de aventuras na cabeça e um sorriso feliz nos lábios.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Private

Esta boina enerva-me porque não é igual à tua. Mas como não consegui arranjar melhor, esta serve para dizer umas quantas coisas que só tu e eu vamos perceber - azarinho. 
A tua boina não tinha estas riscas demasiado menineiras em baixo. Não. Era enorme e absolutamente vermelha-escura. Fez parte de um dos fins-de-ano mais divertidos da minha vida onde fingimos de bonecas de cera, provocámos filas mal-educadas no princípio de escadas rolantes e rapámos um frio desgraçado, sempre a rir. 
Bem vinda de volta, minha querida amiga. Nem eu tinha consciência das saudades que tinha.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Há gente com muita sorte

Costumam dizer-me que eu tenho muita sorte. Confesso que esta expressão sempre me irritou um bocado: dá a sensação  de que tudo nos cai do céu, sem qualquer esforço. Bull. Sorte, como dizia um querido tio meu, "é saber agarrar as oportunidades". Subscrevo na íntegra. Mais, acrescento: sorte, é não ter medo. E acreditar piamente no que se quer.

Este ano, pedi, entre outras coisas, saúde para os meus, harmonia para a família, muita paz. Estas foram as primeiras. A segunda e a terceira foram ideias a rodos e energia para fazer frente a novos desafios; estou cansada de ram-rams, nunca fui gente de ficar parada no mesmo. Os quatro dias desta semana concederam-me isso. De repente, vejo-me cheia de projectos diferentes, a braços com coisas que nunca fiz, a ser puxada por tudo aquilo que pedi e no qual creio sinceramente que sou capaz de me reinventar. 

Caramba. Não me vou livrar nunca do rótulo: tenho mesmo muita sorte. 

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Outra vez

Ontem foi dia de Obama. Ontem foi dia de saber que vou para um espaço ainda melhor dentro deste pátio que eu adoro. Ontem foi dia de muitas outras coisas boas. Apesar de tudo, não consegui que uma linha me saísse dos dedos ou uma ideia proveniente da experiência com o real disparasse e tomasse forma.
A razão é só minha: ontem vi o meu filho mais novo a três dimensões, dentro do meu útero. Vi mãos, pés, braços, pernas e cara, a tal ponto, que consegui perceber que a testa e os lábios são do pai. Por isso fiquei muda. Como só a natureza me emudece.
Já tinha dito isto mas não me canso de repetir.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Miudinha

Lisboa parecia um clichée de Londres. Cinzento-escura, obrigava os carros a acenderem as luzes, as pessoas a piscarem os olhos pela chuva miudinha. 
Ela, sentia-se na Primavera. Saltou para o banco do carro amparando a barriga e o bebé, e cantarolou nos dez minutos que a separaram de uma despensa cheia de coisas boas.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Enjoy the silence

A pouco e pouco, muito devagarinho, como se parecessem não querer que nos esqueçamos de nada, sobretudo das lições a aprender, as núvens afastam-se e a luz do Sol começa a penetrar lentamente no nosso interior. Vou deixar-me estar quieta, sem observar, no gozo puro e simples da contemplação. Preciso de estar calada para que as mensagens mais verdadeiras ganhem âncora. Assim darei á luz o calor.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Enquanto é tempo

- Acorda, meu anjo, agora tem mesmo de ser.

- Preciso de muitos mimos, abracinhos e beijinhos para conseguir, mãe.

Doze anos e ainda a querer tudo isto. Benza-o Deus. 
Eu, pela minha parte, vou aproveitar. Ah, se vou.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Chamar amiga é curto

Eu tenho uma grande amiga.

É daquelas a quem posso ligar seja a qual for a hora e pedir ajuda não importa de que tipo.

É daquelas com quem me rio ainda antes de falar porque basta que nos entreolhemos para perceber a graça.

É das poucas que não tem medo de me puxar as orelhas quando sou idiota ou injusta.

É das raras com quem me posso ter zangado, descobrindo sempre que da discórdia resultava uma amizade ainda mais forte.

E é uma das que se contam pelos dedos grandes de uma mão que fazem por mim aquilo que nem o mais próximo se dispõe a fazer.

É por tudo isto que nestas circunstâncias acho o nosso vocabulário curto. É que chamar-lhe amiga, não chega. E dizer que é como uma irmã é tão óbvio que irrita.

Alguém que invente uma palavra nova, por favor. 

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Escaldão

Acordou naquele dia, sabendo que iria acabá-lo cansada. No entanto, sentia-se feliz por dentro. Para ela, apesar do esforço e do cuidado que sabia que deveria ter por não estar sozinha, tudo justificava o projecto. Então levantou-se, revestiu o bebé dentro da sua barriga com roupas quentes para o defender do frio, protegeu mais objectos dentro de caixas, recebeu os carregadores com um sorriso nos lábios, acordou o filho inventando uma aventura, teve a secreta esperança de um fim de dia celebrado em conjunto, trocando uns copos quaisquer cheios de vinho de amor, mesmo se sentados entre cartão e pilhas de objectos.
Não foi assim. No final do dia, tinha um escaldão na cara provocado pelo frio intenso do exterior. E outro na alma, muito mais profundo, provocado pelo frio de uma raiva que não era sua. Inspirou oxigénio novo, expirou tudo o que não lhe pertencia, deixou ficar a tristeza sem deixar que a adoecesse, secou a cara e olhou em frente. Pelo menos estava ali. Já não era a primeira vez que tinha de empurrar a vida com a barriga. Só que agora estava consciente. Muito mais segura. Teve a certeza absoluta que nada de mal lhe poderia acontecer.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

As Horas


10... 9... 8... já não falta nada... 7... 6... 5... esta noite e amanhã vem o mais chato... 4... 3... 2... mas depois é chegar, descarregar... 1... 0... e já lá estamos: que bom, que bom, que bom. Pode parecer ridículo mas é mesmo assim que eu me sinto. Apesar do cansaço e do Vicente que refila fazendo peso na barriga, sinto-me com pouco mais de sete anos, a touca na cabeça, prestes a dar um grande salto na minha vida. 2009 só pode ser muito bom. Quem me achar ingénua que se dane.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Vésperas IV

A pintora dos móveis junta-se ao técnico da televisão, da internet e do telefone. Senhores da companhia do gás chegam ao mesmo tempo que um sofá e um colchão. O milagre da multiplicação das chaves combina-se com cheiros a aspirado, lavado e esfregado. A fantasia ganha dimensão e forma, enquanto o prosaico da vida ocupa o seu espaço. Paredes ganham cor, começam a encher-se com a nossa vida. Só faltam as gargalhadas, as conversas, os segredos, a intimidade. Essas não tardarão em chegar. E, como sempre na minha vida, agarrar-se-ão às paredes deixando rugas de emoção impregnadas na estrutura.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Vésperas III

Vinte e sete snowballs esperam pacientemente a sua vez de serem embrulhados em papel. Os últimos livros suspiram de inveja por ainda não estarem a dormitar nas caixas. Colares, brincos e anéis encostam-se nos seus espaços já de si exíguos, sabendo que mais cedo ou mais tarde serão apertados entre celofane e papel de seda. As últimas roupas enchem-se de ar nos cabides esperando pelo dia em que serão penduradas no varão do camião. As mercearias perguntam-se quais delas irão conhecer uma nova despensa. 
No meio de tudo isto, o Vicente dorme; dorme e descansa, embalado no líquido e nos movimentos do compasso do meu dia. 

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Vésperas II

Vou ficar tesa que nem um carapau. O termo é mesmo: "sem cheta". E no entanto, sinto-me profundamente feliz. Este projecto a dois, a três e, a partir de fins de Março, a quatro, vale muito a pena. Vale todos os euros investidos num espaço que ambos escolhemos, para o qual revestimos as nossas coisas com uma nova força renovando tecidos, arejando almofadas, raspando e repintando para deitar fora o passado que não interessa e assim conservar apenas as memórias do bom que já foi. Apenas isso. O resto, logo se vê. Tenho malas, sapatos, roupa e adereços para o resto da vida e, se preciso for, não compro mais nenhumas até dois mil e sabe Deus quando. Não me importa. O que é verdadeiramente relevante é este nós gigante que me aquece o coração.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Vésperas

Ano Novo, Vida Nova, Casa Nova. Mil horizontes se abrem e apesar da nostalgia, da ressaca dos doze meses que ficaram para trás, só consigo acreditar que tudo será melhor, que pelo menos estaremos mais próximos uns dos outros, menos ligados ao verbo ter. 
Ilusão? Antes assim.