segunda-feira, 28 de outubro de 2013

som-do-sangue

Eu tinha vinte e um anos e acabava de entrar para a minha primeira agência, como copy trainee. Meio tímida, olhava para todos-os-que-sabiam com a sofreguidão pura de quem quer saber e acredita que com a força da curiosidade, da capacidade e da perseverança, um dia vai conseguir. Claro que não seria fácil mas seria uma questão de tempo. 
Até que chegou aquele dia. Apresentaram-no como o TV Producer e ele levou-me à Namouche, o estúdio de som mais venerado da altura, casa de trabalho de Guilherme Inês e Zé da Ponte. Eu ia assistir a um briefing para a produção de um jingle. O TV Producer falou, gesticulando com as mãos grandes e vi som nas suas palavras. Mais, vi como as palavras dele se transformavam em música, ali, ao vivo, em poucas horas. Sei que fiquei muda, nunca tinha ouvido ninguém explicar uma intenção musical daquela maneira, como se fizesse parte do sangue. 
Chamava-se Zé Cruz, era angolano, bebia, fumava e sabe Deus que mais o quê, e tinha sensibilidade e melodia nos poros porque vivia, vivia de forma intensa, sem medos, desbragada. Com ele aprendi a explicar o som que se quer e a sentir o som que se procura. Aprendi a conhecer o Som, a não ter medo do linguajar do som. Um dia, depois de ter feito um comentário em estúdio, fiquei meio envergonhada e perguntei-lhe se teria ouvido mal. O Zé fez-me uma festa no cabelo, sorriu e disse: "é isso mesmo miúda, não ouviste nada mal, se há coisa que tu não és, é surda." Corei.

Soube há poucas horas que o Zé se foi embora deste mundo e ainda me custa a acreditar. Resta-me o consolo de pensar que, talvez, a esta hora, pode estar a fazer ritmos numa qualquer mesa dos céus, fazendo da música a salvação de alguém.
Que pena nunca mais te ter visto, Zé.

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