quinta-feira, 28 de julho de 2011

a barata

O homem, magro de tanta secura por dentro, foi cascando na vida. Os contornos das suas mil e uma infelicidades foram contados e repetidos, descritos de forma minuciosa e por vezes agressiva. As mãos, eram gentis no desfiar dos cigarros, um após o outro, como se até a sua própria destruição fosse minuciosamente preparada e seguida com rigôr. O homem gozava no mar das suas múltiplas desgraças. Nada se salvava, nem a própria vida. Uma sombra muito escura pairava de tempos a tempos sobre a mesa. Contudo, não permanecia ali por muito tempo, talvez fruto dos presentes que ficavam em silêncio de cada vez que ele os aproximava de mais um azar, mas que, rapidamente retomavam os risos e sorrisos pelo sentido de humor de uns ou pela generosidade de outros. A dado momento, uma barata voadora entrou pela janela e voou, tonta, entre dois dos convidados. A mulher, que era conhecida pela sua fobia, levantou-se de um salto e correu para a cozinha, provocando o estalar aliviado das gargalhadas. Um dos amigos ajudou, prontamente enviando o insecto para o reino dos céus. Alguém comentou que eram bichos limpos, mais limpos que se supunha e que subiam à superfície quando não aguentavam a pressão das profundezas. A mulher compreendeu que esta era a deixa para se ir embora. Já nem as baratas aguentavam tanta negritude. Olhou em volta e de repente achou o homem ridículo, profundamente ridículo, um poço sem fundo nem luz por opção muito própria e bem calculada. Lembrou-se de alguém que conhecera muitos anos antes, exactamente igual a ele, e de como esse alguém arrastara mulheres, amigos e um filho para o seu inferno de forma irreparável. Então, a mulher levantou-se e, com um sorriso, agarrou a sua corda e saiu.

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