domingo, 8 de fevereiro de 2009

Fábulas num baú sem corpo


Numa foto a preto e branco, uma mulher loira e linda de 20 anos, veste blazer cintado sobre umas calças cigarrette à la Grace Kelly que revelam uns tornozelos finos a terminar numas ballerinas. Uma camisa branca, imaculada, abre-se delicadamente sobre o colo do peito. Os olhos escondem-se nuns óculos de extremas arrebitadas e pontiagudas. A cena é anos 50, não por se tratar de uma montagem vintage mas porque acontece realmente nesses anos.
A mulher está sentada num baú de viagem. Por detrás dela, pressentimos um porto, o desembarque recente. Os olhos estão ocultos. Apesar disso, a expressão da cara revela surpresa, talvez um certo desalento. 

Tinham acabado de chegar a Angola depois de uma viagem de um mês, a bordo de um navio que antes fizera escalas na Madeira e São Tomé. Nessas, a fantasia africana de Tita criara raízes e ganhara novos contornos: em cada escala tinham sido recebidos por amigos do recém-marido Alberto ou por diplomatas conhecidos do pai deste. Em todas elas sucediam-se histórias interessantes contadas por gente cheia da cultura do mundo: cada vez mais fascinada com uma nova vida, bem diferente da redoma a que sempre estivera habituada, Tita rendia-se, dia após dia, a uma África de sonho, confabulada pela sua imaginação e reforçada pela novidade.

Agora, na chegada, a realidade esbofeteava-lhe a cara como a humidade peganhenta lhe agarrava as calças ás pernas. A imaginação caiu por terra. Naquele instante, deixou de ser Carmencita ou Tita, virou mulher feita e assumiu nesse estado de adulta o nome que o marido carinhosamente lhe chamava: Mary.

Detestou África nesses primeiros instantes.
Teve saudades da casa dos pais, do conforto de Madrid, das impertinências dos irmãos.
Depois, nos onze anos que se seguiram, compreendeu que a sua imaginação era bem mais curta que o lado mais profundo daquela terra virgem.
Então, amou-a profundamente. 

to be continued...

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