Quando eles eram pequenos e até terem consciência absoluta do todo, ela usava sempre a mesma estratégia de vitimização. Não que fosse consciente, não; isso seria colocá-la a um nível de manipulação do qual ela não seria capaz. O padrão da vítima era o que melhor conseguia fazer para chamar a atenção sobre si, a forma mais veemente da luta possível numa época em que as separações ficavam dentro de casa e os divórcios eram uma vergonha. Os filhos sofreram com isso e durante muitos anos coabitaram numa dualidade extremamente difícil.
A mais nova cresceu, voou para longe. Apenas aí teve uma consciência mais real da natureza das coisas, de quanto a tinha afectado aquela coexistência de antagonismos, do chicote que havia crescido dentro dela que muitas vezes lhe provocava desconfiança na presença de um compromisso com alguém. Revolveu as entranhas, visitou sem medo os espectros do passado e decidiu para si mesma que nunca faria o mesmo: mais depressa tomaria outro caminho, por doloroso que fosse.
A vida, contudo, encarregou-se de lhe trocar as voltas ou, talvez, de a pôr à prova. Um abanão, mal dado e pouco justo, serviu para olhar para si nos últimos tempos, como se ejectada por uma cadeira de piloto a jacto para o céu, observando o seu corpo a reagir cá em baixo. Era um facto: a filha estava a repetir aquilo que tantas vezes vira, com que tanto sofrera e que tanto criticara depois. A visão custou-lhe como ferro em brasa na língua. Engoliu em seco, agradeceu a tomada de consciência e obrigou-se a cumprir o que há algum tempo atrás prometera a si mesma: "tenho o direito de ser amada e respeitada mas, antes de mais, tenho o dever de me amar e respeitar".
Pegou imaginariamente no chicote e sacudiu a vergonha, deixando na pele marcas suficientes como para não mais se esquecer de não repetir.
Um vício só nos trama se não formos capazes de o abandonar.
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