quinta-feira, 19 de julho de 2012

as rasteiras de um certo mundo

A mulher gostava do inesperado, da inevitabilidade do acaso, da sensação permanente de poder agarrar nas coisas reais ou imaginárias e evadir-se para outro lado. Explicou e ele assentiu, num gesto meio triste. Chamou-lhe nómada, ela gostou, embora se visse mais como um pássaro que precisava da porta sempre escancarada para poder regressar com desejo. Não se considerava dona de nada, nem de si mesma, muito menos dos filhos ou daqueles que amava. Por isso hoje era um dia algo complicado, dia de fazer contas, de fazer listas de pagamentos, dos deveres morais ligados ao compromisso material. Como ela dizia, apenas era proprietária das suas dívidas, essa era a razão pela qual as detestava e as pagava como uma promessa religiosa. As dívidas eram dependências de alguém sobre nós ou tornavam-nos dependentes de instituições. Dever era um dos seus verbos mais detestados, fosse qual fosse o sentido. Era o dedo estendido na sua direcção, a culpa ancestral germinando no interior, a corrente agarrada à pata do pássaro. A mulher sabia que apenas havia uma maneira de a cortar: pagar, cumprir e, a pouco e pouco, fechar os olhos, deixando de ver tudo aquilo que na realidade não era necessário e rir, rir das rasteiras que o mundo de alguns homens ainda tentava colocar no seu caminho.

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