Vermelho e laranja-sangue. Azul celeste, frio intenso a quebrar a dor. Partículas amarelo-vivo, ouro-prata, andam pelo ar, enfeitiçando a noite e dando ao teu olhar um brilho divino. O negro ondula por todo o lado, inebriado ao som de uma voz cava, uma voz-droga que nos conduz de novo ao fogo e de novo ao negro. Não me vejo ali. Mas estou. Inserida, mas aparte. Quem sou eu? Uma das mulheres, mais uma, morena, estende-me o lenço e diz:
- És uma de nós.
Sem saber porquê, sinto vergonha. Vermelho e laranja-sangue. Azul celeste, frio intenso, a queimar a dor. A voz penetra o ar quente, descobre-me as entranhas. E de repente tu estás ali, à minha frente, o brilho divino nos olhos que me convida. A vergonha invade-me de novo. Mas tu estendes a mão e dizes:
- Vem.
O meu corpo levanta-se, eu ainda estou sentada. Uma força imensa empurra-o, vinda da tua mão, percorrendo o teu braço, nascendo do topo da tua cabeça. Luz. Luz que assusta, apaixona e desenfreia os sentidos. Braços e mãos, tronco e pernas entrelaçam-se, súam em uníssono, num grito de prazer que se confunde com a voz grave. Quem canta? Nós ou ela? Sinto-me a pairar, no êxtase dos teus braços e de repente fecho os olhos. Cheiras a mel, a caril,a cardamomo. A pimenta negra e a pimentos verdes. Tens toque de canela na pele e mesmo sem ver vejo o negro dos teus olhos entrando dentro de mim. A tua mão envolve-me a nuca, tapa um dos meus ouvidos e a tua boca lança um sopro quente no outro. A segunda mão tapa este ouvido e os teus lábios lançam de novo o vento no primeiro. As tuas duas mãos deixam-me surda e só sinto o ruído do teu ar, como se fosse um búzio gigante que ondula ao ritmo do mar mais profundo. Destapas-me. Vermelho e laranja-sangue. Azul celeste, intenso. Olho-te nos olhos.
- Quem és tu?
Pergunto. A tua boca aproxima-se de novo. Estremeço com medo do prazer do vento.
- Eu sou todas as estradas que nunca percorreste, sou todos aqueles com quem nunca viveste, sou a alfazema, o açafrão e as estepes do norte.
Eu sou a neve, e também a espuma. Sou o negro do carvão e o amarelo do trigo. Trago um diamante no nariz e ouro na minha orelha. Eu sou a paixão e também a morte. Sou o canto profundo e a brisa quente da manhã. Sou o desejo que te consome de madrugada e o desejo que te desperta a meio da tarde.
Eu sou aquele que nunca pára.
Eu trago a sabedoria dos que escutaram sentados. Trago o calor do mediterrâneo.
Eu sou a mistura das línguas e a língua universal, molhada, intensa, imperceptível, perturbadora.
Eu sou o negro mas também o calor do fogo.
Eu sou a suavidade de um pé descalço a pisar a terra macia, sou a força de um salto a enfrentar-se na madeira.
Tenho muitos anos, muitas vidas. E não sou tempo nenhum.
Voltas a olhar-me. Vermelho e laranja-sangue. Negro celeste, intenso. A minha voz sái de uma boca que não é a minha, porque não a vejo. Mas é a minha voz que diz o que quero e o que não quero, o que continua a dar-me vergonha.
- Fica.
A voz-cava invade-me e deixo de ouvir a tua voz. Agora, sim, percebo o que ela diz. Vejo os teus lábios que se movem, as palavras que dizes. De repente, tu e ela são a mesma, dizem o mesmo.
- Não posso ficar se tu não me reconheces.
Não posso ficar se tu me afastas.
Não posso tocar-te se tu não deixas.
Não ficarás nunca enquanto não te reconheceres.
Não serás deste mundo enquanto não me vires como tu.
Sinto lágrimas quentes a deslizar pela cara que é minha mas que não vejo. O desgosto que se aperta na garganta com vontade de explodir. E a vergonha que me invade como um pecado. A tua mão quente na minha cara. O soluço que sobe pela garganta forçando a saída. O teu indicador esguio que pousa sobre a minha boca e que me trava a tristeza. E finalmente os teus lábios sobre os meus, como se quisessem engolir o mundo, cobrindo-me de amor...
Instintivamente, levou a mão à boca, tentando limpar a sensação.
- Que disparate! – disse, para consigo, bem alto.
Levantou-se de um salto, ligou a rádio com o volume no máximo. Tomou um duche, esfregando a pele com vigor. Lavou os dentes trauteando forçadamente a música que vinha do aparelho. Olhou para o armário. Teve vontade de vestir o negro. Com consciência repeliu-o.Vestiu-se de branco e saíu para a rua sem fome.
O eléctrico amarelo aproximava-se lentamente. Subiu. Escolheu o lugar perto da janela, ao lado de uma senhora de idade. Depois de passar por muitas pessoas. Como se não quisesse ser encontrada.
O eléctrico parou. Uma cigana entrou, com um bebé ao colo.Atravessou todas as pessoas e colocou-se diante dela. Não disse nada, apenas olhou. Incomodada, ela respondeu com o olhar. A cigana sorriu.
- Por que é que se está a rir para mim? Não a conheço de lado nenhum! – disse ela, irritada.
- Eu apenas sorri, senhora. – respondeu a cigana.
E acrescentou:
- Não serás deste mundo enquanto não me vires como tu.
Tocou no botão. E saíu como tinha entrado. Do nada. Ela desviou o olhar da janela. Finalmente percebeu porque tinha sentido vergonha.
(Escrevi este conto há muitos anos, convidada pela "CAIS" e tendo como tema a exclusão social. Foi integrado num livro chamado "15 anos, 15 contos" que agora vai ser reeditado. Por esta razão, descobri-o de novo, encontrando a primeira inocência da minha escrita-não-comercial...)
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