sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Fico comigo

Quando era pequenina, visitávamos a casa de uma das irmãs do meu pai muitas vezes. Ela vivia na antiga casa do Ramalho Ortigão ali na Calçada dos Caetanos, junto ao Conservatório. A casa raramente estava vazia de gente e se o estava, os salões e os móveis faziam as despesas de muitas conversas. Lembro-me do piano de cauda parcialmente queimado num incêndio e da parede mesmo ao lado que parecia ter sido pintada com os efeitos do fumo e das labaredas. A minha tia dizia que o tio António continuava a tocar, mesmo depois de ter morrido, e que ela falava com ele, noite sim, noite, não. Eu ficava assustadíssima com estes mistérios e a casa parecia duplicar de tamanho. Contudo, todas aquelas coisas me maravilhavam e por isso adorava visitar aquela tia cheia de histórias com ou sem fantasmas. 

A tia Fernanda tinha um cabelo muito preto muito preto, que enrolava em duas tranças finas por cima das orelhas, uns olhos verde-escuro que pareciam de veludo e uma boca que ao sorrir atraía meio mundo. Fazia anos em Dezembro e as festas eram sempre de arromba, sendo que as crianças não ficavam de fora (coisa tão do hábito daquela altura); podiam correr pela casa fingindo susto por causa do Preto-Vicente que, mesmo tendo muita idade para ter juízo, regredia dos seus dois metros aos nossos escassos centímetros para nos entreter com todo o gosto. Uma dessas festas foi tão divertida que fomos os últimos a sair. Eu tinha nove anos e nem um pingo de sono. À saída, o meu pai disse

"Obrigada, Fernanda, que festa maravilhosa. Só tenho pena que fiques sozinha, agora."

Ela riu-se e tudo brilhou em volta

"Sozinha, Alberto? Não fico não, meu querido: fico comigo."

Chamava-se Fernanda de Castro e escreveu muitas outras coisas que ficaram bem mais conhecidas. Mas esta frase marcou-me para o resto da vida.
Hoje lembrei-me especialmente dela porque embora esteja e vá estar grande parte do tempo sem mais ninguém, sinto especial prazer em estar comigo, o que na realidade é bem diferente de estar sozinha.

1 comentário:

Leonor Silva Carvalho disse...

Linda, só para te dizer que adorei esta história, não só pelo seu significado tão importante como pela escrita.

beijo grande